PI V-VI. Lisboa, Jorge Rodrigues, 1602
ANO EDIÇÃO: 
1602

EDITOR

Jorge Rodrigues. 

A sua actividade desenvolveu-se em Lisboa. A sua relativa fama dentro do âmbito tipográfico deve-se às edições piratas da Primera e Segunda Partes do Quixote. Crê-se que já estava activo nos finais do século XVI e chegou a trabalhar até perto de 1641. Colaborou com António Álvares em 1602.

PARATEXTOS FRONTISPÍCIO

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[{1r}] Quinta e Sexta Parte de Palmeirim de Inglaterra.

Dirigida a dom Diogo da Silva, conde de Portalegre.

Dom Clarisol de Bretanha.
Crónica do famoso príncipe dom Clarisol de Bretanha, filho do príncipe dom Duardos de Bretanha, na qual se contam suas grandes cavalarias, e dos príncipes Lindamor, Clarifebo e Beliandro de Grécia, filhos de Vasperaldo, Laudimante e Primalião, e de outros muitos príncipes e cavaleiros famosos de seu tempo.

Composta por Baltasar Gonçalvez Lobato, natural da cidade de Tavira.
Impresso com licença da Santa Inquisição. Ano de 1602.
Em Lisboa, por Jorge Rodrigues.

Com privilégio real.

PARATEXTOS PRÓLOGOS

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[{2r}: prólogo] Prólogo dirigido a dom Diogo da Silva, conde de Portalegre, mordomo-mor de Sua Magestade nestes reinos de Portugal.

 

Parece tamanha ousadia querer alguém seguir a Crónica de Palmeirim de Inglaterra, por quão bem assi ela como a Terceira e Quarta Parte da mesma tem parecido a todos, que antes a temeridade que a outra cousa se pode com rezão atribuir. Sem embargo disto quis furtar o corpo a todos estes receos e escrever esta Quinta e Sexta Parte por ver o muito tempo que há que se espera com tanto desejo de todos. Contudo, nem esta rezão bastara pera querer manifestar meus erros, se não me lembrara que me pode ficar por bastante disculpa deles a pouca experiência e idade, que ainda agora por via de restituição pode ser admitida.
Bem sei que não há isto de bastar contra o mordaz e maldizente vulgo, o qual nem ainda perdoa faltas pequenas, quanto mais as minhas, que são grandes. A isto quis eu fugir com dedicar a Vossa Senhoria esta obra, na rudeza e humildade tão pequena, como grande a vontade com que a ofereço pera que debaixo de tal proteição e amparo possa livre e sem receo sair a luz com ela. E posto que se mormure da obra, não terei rezão de me queixar. Isso fique para os sábios quando as suas não forem julgadas com o devido louvor, que as minhas mal as pode alguém tachar que milhor as não entenda.

 

Baltasar Gonçalvez Lobato.

PARATEXTOS LICENÇAS

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[{1v}: licenças e aprovações] Vi esta Quinta e Sexta parte da Crónica de Palmeirim de Inglaterra, composta por Baltasar Gonçalves. Não tem cousa contra nossa santa fé católica, bons costumes e guarda deles, por onde sou de parecer que se possa imprimir, porque ainda que a lição de semelhantes livros não sirua pera edificação, serve para entretenimento do tempo e pera alívio de muitas outras cousas que combatem a vida, o qual conselho, além de ser do Espíritu Santo, 2 Machabeorum, cap. 15, é também de Plutarco, quando, entre outras cousas, diz: «Laxandus est aliquando ut aiunt pes et fluctibus/ obsequendum, etc».

Frei Manoel Coelho.

 

Vista a informação, pode-se imprimir esta Quinta e Sexta parte da Crónica de Palmeirim de Inglaterra. E depois de impressa, torne a este conselho para se conferir com o original e se dar licença para correr; e sem ela não correrá.
Em Lisboa, a 9 de Maio de 602.

Marcos Teixeira. Rui Pires da Veiga.

 

Vista a informação oferecida do padre Frei Manoel Coelho, pode-se imprimir esta Quinta e Sexta Parte da Crónica de Palmeirim de Inglaterra.
A 5 de novembro de 1602.

Simão Borges.

 

Que possa imprimir este livro, que foi visto na mesa, vista a licença do Santo Ofício que apressenta.

Em Lisboa, a 12 de junho de mil e seis centos e dous.

D. Daguiar. Fonsequa. Jorge de Cabedo.

PARATEXTOS DEDICATÓRIA

A dom Diogo da Silva, conde de Portalegre, mordomo-mor de Sua Magestade nestes reinos de Portugal.

PARATEXTOS CÓLOFON

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[98v] Laus Deo.
Acabou-se a Crónica do muito esforçado cavaleiro dom Clarisol de Bretanha, neto de Palmeirim de Inglaterra, que é a Quinta e Sesta parte, aos três dias do mês de novembro, na era de 1602 anos.
Foi impressa esta Sesta Parte em casa de António Álvarez.

PARATEXTOS COMPOSIÇÕES POÉTICAS

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[{2v}] De Diogo Taborda Leitão ao autor.
Soneto.

 

Cândido cisne que com voz sonora,
de Menandro a ribeira emnobrecida,
deixas de todo tanto escurecida,
quanto a do nosso Tejo ufana agora.

Que armonia tão doce em peito mora,
ou que lira no mundo tão sobida
que iguale à tua, nele nunca ouvida,
que a todos, com rezão, tanto namora?

Quem finezas de amor, de armas grandezas,
famosas aventuras acabadas
de incançáveis espritos ver deseja,

aqui de Clarisol veja as proezas,
e em ti mil subtilezas dilicadas
que poema Marte espanto, a Apolo inveja.

 


De Bertolameu Luis Jaques ao autor.
Soneto.

 

O peito de Alexandre se alterava
quando Timoteo, músico famoso,
os efeitos de Marte riguroso
na cíthara sonora lhe cantava,

e se logo o som bélico trocava
em brando e doce acento saudoso
tão manso se tornava e amoroso,
quanto guerreiro dantes se mostrava.

Assi com vosso estilo leuantado,
estes raros efeitos nos causava,
ora de amor canteis, ora de Marte,

um claro Sol ao mundo tendes dado,
em que mil maravilhas nos mostrais,
nele d´esforço em vós de engenho e arte.

 


De um amigo ao autor.
Soneto.

 

Este que aqui nos dá com mil primores
vários efeitos de Cupido e Marte,
este que tanto excede em toda a parte
os mais graves e raros escritores,

é quem Febo escolheo entre os melhores,
por sua erudição, engenho e arte,
e é com quem Minerva só reparte
seu saber e a quem dá justos louvores;

é inveja do mundo, é inuejado
dos que mais viva têm nele a memória,
des do suave Tejo ao fértil Nilo,

seja logo seu nome eternizado
pois nos dá em subtil e branda história
valor de armas e amor em alto estilo.

 

COMPOSIÇÕES POÉTICAS

 

V PARTE

 

[3v/a] Após o fogo, vou ardendo em fogo
por alcançar o fim de minha mágoa,
mas não alcanço fogo, alcanço ágoa.


Cada momento o traspassa
a dor que trás a memória,
porque um coração sem glória
é justo que estremos faça.

 

 

[10v/b] Não é pouco o que alcança
de prémio que o cobiça
quando adorna a vingança
c´os esmaltes da justiça.

 

 

[14r/b] São do mar, mas de amar vem
que, nestas ondas queixosas,
vêm as lembranças saudosas
do desterro de meu bem.


Esta figura mortal
também n´alma anda insculpida,
porque quem me dava a vida
me deixou este sinal.

 

 

[15r/b] Cheguei a tão triste fim,
que é meu contentamento
nuves, fumo, ar e vento
levantados contra mim.


Olhos, língoa e coração
sintam tamanho tromento,
porque só no sentimento
posso achar consolação.

 

 

[20r/a] Mil mundos, se mil houvera,
fora justo rodear
por vos, senhora, buscar.


Escritas são por estremos,
que o que de fora se pinta
tem dentro n´alma outra tinta.

 

 

[22v/a] A minha sombra me cobre
a vida por não perdê-la,
como sombra vivo dela.


De ambas recebo tormento:
duma porque me deixou;
doutra porque me levou
todo o meu contentamento.


[22v/a] Maiores trabalhos venham,
que, se em sofrê-los consiste,
buscarei, por ser mais triste,
outros que mais males tenham.


Se assi fosse, não seria
pera mim o fado escasso,
nem o coração, que ao braço
mor poder então daria.

 

 

[23r/a] Nem ao céo nem contra Deos
por vos livrar farei guerra,
mas fá-la-ei a toda a terra.


Ficou tudo escuridade
quando vosso sol foi posto,
tornai a virar o rosto
e dar-me-eis claridade.

 

 

[28r/a] Deceo ao tormento eterno
porque seu tormento o era,
mas se eu por vós lá decera,
então não fora ele Inferno.


[28r/b] Se vosso sol me der luz,
mais quero esse sol que a lua,
e mais vossa luz que a sua.

 

 

[37v/a] Alívio doce de meu pensamento ,
esperança clara do que n´alma sinto,
descanço do inquieto laberinto,
aonde esta vida, por perder sustento,

tanto fiz em perder-me o fundamento,
que quem me quer cobrar não lho consento
por ser estampa que nesta alma pinto,
perdas cobradas num sembrante izento.

Quanto mais me perco e perder-me vejo
me descansa a perda por ser bem perdida
a doce liberdade que descança as penas.

Não pode fazer falta este dezejo
que ũa alma que a ti, ninfa, está rendida,
descança com o mal que tu lhe ordenas.


[37v/b] Entre vários pensamentos
aonde esperança falta,
um pastor suspensso e triste
desta sorte se queixava:

«Serviços sem galardão
feitos a ti, dura ingrata,
no tempo de meus amores
pelo frio, neve e calma,

folgavas na ardente sesta
ouvir-me quando cantava
debaxo dos verdes sauzes
ou dos frexos e altas faias.

Puderam tanto desditas
de minha ventura incauta
que esqueceste um amor puro
saído do centro d´alma.

Tratavas-me com enganos
nos enganos que tratavas
a um amador teu cativo,
que verdade te tratava.

[38r/a] Permitiste por cruel
deixares tua cabana,
o campo próprio e aldea
e viver entre montanhas.

Engeitaste o teu pastor,
que te tinha entregue a palma
do seu coração por outro
que teu amor não abraza.

O castigo desta culpa
que dou a outrem me inflama
e quer cruel que consinta
que sejas tu desculpada.

Seis anos que servi
confiado na esperança
do bem que esta alma esperava
por satisfação e paga.

Não contente com serviços
aonde mais me empregava,
me queres tirar as penas
que descançam corpo e alma.

São testemunha estes bosques
disto que digo e as ágoas
estas árvores e fonte
onde fermosa te olhavas.

Esta verdade publico
onde o pensamento basta,
pois ele sabe a mor parte
do muito que aí passavas.

[38r/b] Nos versos das avesinhas,
na menhã rompendo alva,
entendias meus amores
nas cantigas meduladas.

Já mudaste a natureza
quem te poude assi mudá-la,
que de outrem te lembrasses,
sendo só de mi lembrada.

Já, cruel, serás contente
em não perseguir esta alma
a lembrança que ma tinha
em vivo fogo quemada.

Porém, fiar de molheres
dá onde nasce mudança,
trás no fim conhecimento
que no fim se torna em nada.

 

 

[51v/a] Quem consigo me levar
seguro vai de vencer
todo humano poder.


[51v/b] Desta sorte se castiga
a mal fundada tenção
de um covarde coração.

 

 

[61r/b] Nestes se abraza meu peito.

 

 

[61v/a] Das sombras deste me cubro,
que as alegres sombras, não
são sombras, inferno são.

 

 

[69r/a] Se não me falta a ventura,
a terra, o mar, fogo e o vento,
águia do pensamento,
a luz vencera segura,
apesar do esquecimento.

 

 

[108v/a] De que serve queixar-me a vós, senhora,
se as penas não cansam de cansar-me?
Não quero já de vós a vós queixar-me
pela muita crueldade que em vós mora;

e pois o mal que padeço não melhora,
mas nele pretendeis aventejar-me,
acabai já de todo de acabar-me,
que milhor se sofre o mal sendo de um hora.

Porém, como na dureza desse peito
a crueldade vive tão constante,
dais a morte no tempo mais sentida.

Em me matardes, vos é certa a vida,
que para em mi fazer contrário efeito
só vós, senhora, a minha sois bastante.

 

 

[110r/b] Só porque acabe é sinal
acabar-se esta sospeita,
mas a morte que me engeita
guarda-me pera mor mal.

 

 

[112v/b] Por mais males que padeça
em ser constante me fundo;
dê o que quizer o mundo.

 

 

[114r/b] A destruição de meu bem
por meu mal trago pintado,
e estas duras pedras têm
a calidade de quem
me tem posto em tal estado.

 

 

[114v/a] Sem mim, sem glória, sem vós,
imagem convosco triste
passo a pena, que consiste
no que amor me dá por vós.

 

 

[115r/a] Não é pequeno estremo
que supra vosa beleza
o que falta a natureza.


Sepultura de leais
inconstantes, enemigas,
de novidades amigas
e de enganos muito mais.

 

 

[116r/a] Mostra amor em mim vossos poderes.

 

 

[117v/a] Se o fructo tarde se colhe,
meu cuidado não é muito
que me tarde com seu fructo.


Enganou-me a verdadeira,
mas pera poder viver
pintada a quero trazer.

 

 

[118v/b] Quando a causa é tão justa
justo é ter esperança
pera tão justa vingança.


Rosas são para mi vosas cruezas.

 

 

[116r/a] Mostra amor em mim vossos poderes.

 

 

[117v/a] Se o fructo tarde se colhe,
meu cuidado não é muito
que me tarde com seu fructo.


Enganou-me a verdadeira,
mas pera poder viver
pintada a quero trazer.

 

 

[118v/b] Quando a causa é tão justa
justo é ter esperança
pera tão justa vingança.


Rosas são para mi vosas cruezas.

 

 

[121r/a] O que é verdadeiro amante,
se o temor não tem no peito,
nunca pode ser perfeito.


Temo porque a glória é muita.

 

 

[121v/b] Fujo por não vir a males
que nascem de vos querer,
nos quais me não quero ver.

 

 

[122r/a] Trabalho por deſcançar
e quando ao descanço venho
muitos mais trabalhos tenho.


Tal fico quando a queixar-me
vou dos males que me fes
sem azas, sem mãos, sem pés.


[122r/b] Ter eu vida, que me importa
se minha esperança é morta?

 

 

[123v/b] Não se lhe deve guardar,
porque de enganar se preza
à molher fé nem firmeza.


Mereço-a, não por leal,
mas perguntado porque?
Digo que por não ter fé.

 

 

[127r/b] Enquanto se não mudar
tão riguroso intento,
mal pode dissimular
meu coração seu tormento.

 

 

[128v/b] Tudo merece quem serve
lealmente a seu senhor.
Assim me pagou amor.

 

 

[129r/a] Quem nessas mostras se fia
sabe mal quais são os danos
que trazem vosos enganos.


Aqui, senhora, e vereis
que, se ferirdes aqui,
em ves de ferir a mi,
a vós própria ferireis.

 

 

[130v/a] Ofensa faz a Marte quem te serve.

 

 

[131v/a] Conquistá-lo por vós é fazer pouco.

 

 

[132r/a] Quem te não busca e te segue
não sei a causa que tem,
mas sei que sem ti não há bem.

 

 

[133r/b] No acabar samos iguais,
mas tu acabas cantando
e eu queixoso e chorando.


Como este pode ceguar
o sol de vossa beleza
a quem como eu o olhar
com tanto amor e firmeza.

 

 

[133v/a] Porque não morram d´espanto
em ver vosso belo rosto,
vindes com este véo posto.


Enquanto me não sogeita
este ingrato coração
quero eu dar-lhe sugeição.

 

 

[134r/b] Se Cupido, deos do amor,
vos conhece por senhora,
que fará quem vos adora?

 

 

VI PARTE

 

[4r/b] Faz me fazer guerra ao mundo
o que a sepultura encerra,
mas menos me ofende a guerra
que meu tormento profundo.

 

 

I PARTE[6r/b] Vingança de Maltafur.

 

 

[10r/a] Se me desse o meu amor
por nossa mão tanto bem,
mais contente que ninguém
vivera com minha dor.

 

 

[25r/b] Assi minha fé se mostra,
arde e vela o pensamento,
queima-se o contentamento.

 

 

[25v/b] Do passado me arrependo,
minha alma só do presente.
Manda amor que se contente.

 

 

[45v/a] Quem sem ventura trabalha,
se sobe como eu sobi,
dece assi, como eu deci.

 

Chorando meu mal alivio.

 

[45v/b] Descanço de pinitentes,
a que eu chamo cançar,
pois não descança chorar.

 

 

 

[49v/b] Neste perigo me vi,
mas passando este perigo,
outro me lembra, outro sigo,
outro mar me mata a mim.

 

 

[56v/a] A um só se concede esta entrada.


[56v/b] A quem daqui passar espera a morte.

 

 

[76v/a] Amor e receo são
os liõis com quem pelejo,
sabe o céo só meu desejo.


Tudo pode minha fé.


[76v/b] Que esperança de victória
levarei, se o rosto belo
me virais só por não vê-lo.

 

 

[77r/b] Contra o soberbo, a rezão
guarda segura a victória,
pera o vencedor a glória.

 

 

[78r/b] No milhor fico mais triste
porque vendo-me a mi, vejo
por demais todo o desejo.

 

 

[78v/a] De meu coração se ceva
quem resistir-lhe pudera
a aquela inhumana fera.

 

 

[79r/a] Este que ũa vez perdido
tarde se torna a cobrar,
quero esconder e guardar
no lugar mais escondido.


[79r/b] Sempre que com esta me abraço,
posto que ofende a firmeza
retratar-me com a crueza.

 

 

[79v/b] Posto que é negro e estremo
de rigor e espanto o Etna,
por ele passo sem pena.

 

 

[80r/b] Campo celeste, mão bela,
apesar da sorte dura,
dai-me em vencer a ventura
que tivestes em vencê-la.


Merecia minha fé menos crueza.

 

 

[86r/a] Fénix bela não pareça,
tanta dureza tão justa
nem pouco o que amor me custa,
nem muito que a dor mereça.


[86r/b] Buscando-a iremos correndo
todos cinco a toda a parte
pelos caminhos de Marte
novamente discorrendo.

 

 

[93r/a] Com mais veloz carreira o que eu enfreo,
o passo movera por toda a terra
sem nunca recusar lícita guerra.


[93r/b] Se por mim for a ventura,
faça o tempo o que quiser,
corra por onde correr.

 

 

[93v/a] Quem as defende mas deu,
mas eu, apesar da sorte,
a muitos dei crua morte
com perda do sangue meu.


[93v/b] Esta memória me tras,
esta memória me leva,
esta memória me enleva.


Dentro nele o coração
abrazado com tormento,
mas no céo meu pensamento.

 

 

[94v/a] Pera os que mais merecem,
que na vida a par de mi
jurarei que nunca a vi.


Quem comigo alcançar
o estado que mais descança,
espere minha mudança.


A primeira foi por erro
ou foi ensaio a meu ver
pera mais firme querer.


É por engano esse riso,
Fortuna não me contento,
que tens comércio c´o vento
e moveste de improvizo.

 

 

[95v/b] Se bem se considerar
de minha afeição o preço,
dobrada palma mereço.

 


Poderosa é vossa vista
pera amansar e render
destas feras o poder.

 

 

[96r/a] Claro vereis estampado,
por escusar mais pintura,
o ser de minha ventura.

CARTAS

 

[27r/a] Carta.

 

Se as penas, misérias e tormentos que nesta dura e temerosa masmorra continuamente padeço fossem executados por algũa culpa cometida contra aquele de quem os recebo, em certo modo ficaram mais brandos e sofríveis com a imaginação dela, pois naõ parecia alheo de rezão pagar o mísero corpo aquilo que injustamente cometeo, mas lembrando-me quão fora estou de toda culpa e vendo-me com contínuos açoutes chegado ao derradeiro estremo da vida a acabo de consumir com lágrimas e soluços arrancados do íntimo d´alma, que em breve tempo desemparará este corpo e permita Deos aceitar estes martírios para que, em pago da morte que aqui tenho certa, me dê a vida que para sempre dura.

 

 

[27r/a] Carta da sábia Medea pera o Príncipe de Trácia, Vasperaldo:

 

Se as cousas pelo alto Senhor ordenadas, valeroso príncipe, não podem preverter-se nem faltar em nada, não parece rezão que a quem ele dotou de um juízo tão claro, falte o devido conhecimento pera tomar a presente adversidade como mimo de sua mão, pois enfim aos seus mais queridos servos tem ele por costume provar com semelhantes ocasiõis para que com o sufrimento delas possam mais merecer. E porque pera vossa consolação bastam estas poucas palavras, convém que tanto que esta virdes, armado das armas que vos dará a minha donzela, vos partais de Constantinopla, que assi é necessário ao descanço vosso.

 

Medea.