TíTULO COMPLETO DO LIVRO
A Primera Parte da Crónica do Emperador Clarimundo, donde os Reis de Portugal descendem
AUTOR
JOÃO DE BARROS
ÁRVORE GENEALÓGICA
EDIÇÕES
CIC. Lisboa, Germão Galharde, 1522
ANO EDIÇÃO
EDITOR
Germão Galharde.
De origem francesa, Gaillard veio a morar a Lisboa, onde se convirtiu no impressor que mais obras publicou durante o século XVI, depois de João de Barreira. A sua actividade desenvolveu-se entre 1509 e 1561, usando na maioria das ocasiões caracteres góticos. As suas marcas tipográficas basearam-se ora na esfera armilar ora no escudo de armas reais com um grifo no timbre.
PARATEXTOS FRONTISPÍCIO
Primera parte da crónica do emperador Clarimundo donde os Reys de Portugal desçendem.
ÍNDICE DE CAPÍTULOS
PARATEXTOS PRÓLOGOS
[{4v}] Prólogo feito depois desta obra imprensa, ao mui alto e muito poderoso Rei dom João, Terceiro deste nome, per João de Barros, seu criado.
Amor, favor e temor, rei mui poderoso, príncipe de justiça, têm tanta força todalas cousas, que nenhũa se pode fazer sem algum deles e, às vezes, ũa com todos. E assi como o primeiro há de permanecer com nossa alma, assi antecede aos dous nas obras que neste mundo faz, ca loguo leva ũa ordem firme, um concerto seguro, ũa liberalidade franca que os outros não têm. E ele me fez despor os dias passados pera servir Vosa Alteza na trasladação desta Crónica, e sabendo isto de mim, usastes tão liberalmente comiguo dando-me a iso favor que em espaço d´oito meses acabei de a trasladar, da qual a vosa real casa leva a maior glória, porque ela foi o claro estudo em que toda minha vida empreguei. E per cima das arcas da vosa guarda-roupa pubricamente, como muitos sabem, sem outro repouso, sem mais recolhimento, onde o juízo quieto podesse escolher as cousas que a fantesia lhe representava, fiz o que meu amor e voso favor ordenaram. E como colhi este fruito mais temporão do que divera, mandei-o empremir, no qual tempo, per vontade da suma potência, recebestes o real cetro dino de Vós, e Vós muito mais dele. E este cuidado de governar, reger, prover todalas particularidades de vossos povos e reinos me fizeram estimar em muito o que tinha começado, porque, quando lho dirigi no seguinte prólogo, as menos ocupações que então tinha lhe faziam tomar algũa pera emendar meus erros. Mas agora, na segunda mão que é a mais trabalhosa, conhecendo a fraqueza de meu istilo e a grandeza de voso real estado, fizeram-me duvidar o que faria, se perder o gasto que tinha feito na empressão entregando o meu trabalho ao foguo, ou sair à luz com ele. E nestas dúvidas sobreveo o temor de fazer tal desacatamento as cousas onde Vosa Alteza possera os olhos. E deste temor tomei ousadia pera dar fim ao que me inda não satisfaz, porque todalas obras têm arrependimento: as boas quando não trazem o efeito pera que se ordenam, as más por se fazerem, as duvidosas por terem o fim incerto. Este é outro novo temor com que as primícias de minha pobreza se apresentam ante Vosa Real Magestade, a que peço não como elas merecem, mas se de Vós espera sejam inda favorecidas.
[1r] Prólogo sobre a trasladação da Primeira Parte da Crónica do Emperador Clarimundo, donde os Reis de Portugal descendem. Derigido ao esclarecido príncipe dom João, filho do mui poderoso rei dom Manuel, primeiro deste nome, per João de Barros, seu criado.
Não tem a natureza, mui alto e esclarecido Príncipe, tão desordenada ordem na repartição de suas graças e perfeições que a cada um dos humanos não de ũa em especial. E quem se queixar dela não será com razão, porque se o não dotou d´esforçada usadia nas cousas do militar exercício, deu-lhe divino conselho pera as saber governar. Se lhe tirou a perfeição de perfeito orador, não lhe negou avondança do verificar. Se o desfaleceo no conhecimento das consonâncias da música, supero[u]-lhe esta mínguoa com desposição, graça, gentileza, e bem ar em vistir e fazer cousas que cobrem o desfalecimento que tem nas outras.
E porque todas estas e as que dão perfeição sem tacha mui poucas vezes ou nunca se virá em [1v] ũa só pessoa, disse Homero, não deu Deos a um todalas cousas. Mas isto se nam entende em Vossa Alteza, pois, além das virtudes que per mão divina em Vossa Real Pessoa foram influídas de todalas graças que a Natureza tinha, vos fez justamente verdadeiro posseedor; e bem o tendes mostrado, Príncipe excelente, des o princípio de vossa infância té o presente tempo da perfeita adolescência, usando de cada ũa nos casos e tempos oportunos pera que foram ordenadas, sem antremeter as de prazer em tempo de pesar, mas per ordem distribuídas, que são em Vossa Real Senhoria, exemplo pera quem perfeitamente quiser obrar. E como eu, Ilustríssimo Príncipe, fosse criado sob a deciplina destas magníficas obras que no discurso de sua vida tem feito, notei quão grande imiguo era do ouciosidade danosa; e nesta parte, pois minha baira calidade a mais não podia suprir, quis imitar seu virtuoso exercício, lendo as vidas e obras dos passados e excelentes príncipes que tanto exemplo com elas deram até o tempo d´El-Rei, nosso senhor e progenitor vosso, que assi a todas escureceo como o claro sol as estrelas cega, alcançando vitória, saber e indústria pera alcançar outros, se os hi houvesse neste, que no outro segundo suas pias e virtuosas obras asaz tem ganhado de glória. E ainda que Vossa Alteza dele herdasse não inclinar des os ouvidos a cousas de vosso louvor, não me pareceo justo chegar a ũas e a outras sem pagar o débito e tributo per Deos ordenado, que é louvar a quem bem obra, porque com o tal louvor damos graças a ele, eterno ministrador das virtuosas operações e miraculosas façanhas. Pois quem será de tanta ingratidão, Príncipe mui esclarecido, que se não antremeta a querê-las louvar, principalmente aqueles com quem nesta parte de bem dizer a natureza comunicou sua graça? E porque quanto me ela aqui tem negado acrecentou em desejo de vos servir, bejarei vossas reaes mãos perdoar a meu fraco e atrevido engenho cometer estes cometimentos de louvor, pois a outras pessoas de mais saber e autoridade é permetida licença de navegar pelo mar de suas grandes obras, dinas de eternal memória, porque a pouca suficiência de meu engenho ainda agora em pequenos rios pode ser perdida, não tendo idade e estudo pera em tão alto golfão me antremeter, ao qual Lívio Salústio Virgílio nem Lucano creo que deram princípio, pois tão dificultoso lhe fora d´achar meo e fim.
E como eu, Príncipe mui poderoso, nas obras qu´estes compuseram gastase o que me restava de tempo, depois que em outras cousas vos servia, ofereceo-se caso que todo em vosso serviço empregado fosse digno isto per dar o senhor porque, antre alguns alemães e estrangeiros que com a Rainha, nossa senhora, a estes reinos de Portugal vieram, foi Carlim Delamor, homem fidalgo e bem docto em todalas cousas que a tal pessoa convinham. E como as suas me contentavam, trabalhei por alcançar dele sua conversação e amizade, e conhecendo ele isto de mim, deu-me tanta parte dela que satisfez a meu desejo, e enquanto nestes reinos esteve, antre muitas cousas de pasatempo que neste tínhamos era contar ele as grandezas dos emperadores d´Alemanha e Constantinopla com tanta ordem e concerto que parecia ter o própio oreginal delas na memória. E as que ali lustravam em mais admiração e grandeza eram do emperador Clarimundo, que, segundo são maravilhosas, fazem presumir serem mais favor d´escriptores que verdadeira relação da verdade. Porém, pois das antigas cousas não temos outra certeza, é nescesário darmos-lhe tanta fé quanta nos eles testificam, quanto mais que a espertência das nossas presentes autorizam todalas suas passadas.
E quem nesta verdade duvidar ponha [2r] os olhos na grandeza das obras d´El-Rei, vosso padre, e desfará a roda do pouco crédito que a todalas outras der. E já no tempo deste não menos Cristianíssimo que, esforçado Príncipe, se mostrava ũa figura do que os de sua linhagem no seu fariam, por que a ele escolheo Deos pera origem dos Reis de Portugal, donde Vossa Alteza havia de descender, como adiante se neste primeiro capítolo dirá, e porque somente os húngaros e gregos de suas memoraves façanhas tinham lembrança, polas em sua linguagem terem escriptas, quis trespasar esta primeira parte de sua Crónica em a nossa portuguesa, porque a nós suas cousas também púbricas fossem, pois nos tocam pola parte que dele recebemos, que foram tão cristianíssimos e poderosos reis como os portugueses têm alcançado, sendo primeiro da suma potência concebido. E ainda, magnânimo Príncipe, que seja dino de muita reprensão pelo atrevimento que tomei em trasladar cousa que com eloquência divera ser relatada.
Não creo que o serei em tanto extremo como o fora de meu desejo em não obrar obra de que Vossa Alteza fosse servido, pois este é o fim pera que quero longa vida, e esta vontade me desculpa da culpa que por isso me quiserem dar. E também, confirando eu ser feitura vossa, acodio-me um fervor de fé que não podia alguém reprender este atrevimento, crendo que há de ser favorecido da vossa liberal vontade, como todalas cousas zelosas de bem obrar o são. E este favor dará tanto lustro ao tempo que aqui empreguei, que cegará a quem lhe quiser poer nome de perdido. E posto que deste periguo seja salvo, não creo ser mui seguro dos que acharam quantos escriveram, porque difícil é escapar alguém da diversidade dos juízos ouciosos, os quaes têm um parecer pera julgar e outro sentir pera fazer, e todos emendam o alheo e poucos sentem o seu. Mas primeiro que minha fama seus combates sinta, beijarei vossas reaes mãos mandar prover esta tão grande e excelente Crónica com milhor envenção, e mais avondosa eloquência, e enventiva elegância do que se nela por minha rudeza achará. E com este seguro real de real mão recebido serei salvo do impetuoso murmurar.
PARATEXTOS DEDICATÓRIA
Dirigido ao esclarecido príncipe D. João, filho do mui poderoso rei D. Manuel, Primeiro deste nome.
PARATEXTOS CÓLOFON
[176v] Acaba-se a primeira parte da crónica do emperador Clarimundo donde os reis de Portugal desçem, tirada de linguoagem Ungara em a nossa Portuguesa per Joam de Barros e impre[s]sa per German Gualharde com previlegio real que ninguem a possa empremir daqui a dezoito anos, nem trazer fora do reino, tirada em ontra linguagem so[b] pena de perder os livros. A qual se empremto nesta nobre e sempre leal çidade de Lixboa. A III dias de Março da era de Mil e quinhentos e xxij.
PARATEXTOS OUTROS
[2r-2v] Concordância que o traslador faz antre dous coronistas sobre a vinda de dom Anrique nestes reinos d´Espanha e sobre a sua genealogia.
Ainda que isto seja fora da ordem e princípio desta Crónica, por ser mui descessário a trasladaçam dela, me pareceo cousa justa e devida tocar aquilo de que tem nescesidade, porque aqueles que as crónicas dos reis de Portugal e Castela lerem não tenham algũa dúvida em que possam embicar. Diguo isto porque, segundo Duarte Galvão no princípio da Crónica que d´El-Rei dom Afonso Anrique compôs, primeiro deste nome em Portugal, contando da vinda de dom Anrique, seu pai, no tempo d´El-Rei dom Afonso de Castela, que emperador d´Espanha se chamava, diz ser este dom Anrique segundogénito d´El-Rei d´Ongria e de ũa irmã do conde dom Reimão de Tolosa, que com o conde dom Reimão de São Gil, todos juntos a estes reinos d´Espanha vieram; e mosém Dioguo de Valera, na sua Valereana, tem o contrairo, dizendo como dom Anrique era natural de Constantinopla e que, servindo na guerra a El-Rei [2v] dom Afonso de Castela, fazendo obras dinas de tal galardão lhe dera sua filha Tareija por ligítima molher, e em dote as terras que então em Portugal aos mouros eram tomadas, como se mais largamente na Crónica d´El-Rei dom Afonso mostra, pois parece nesta contrariadade da pátria e natureza de dom Anrique que estes dous coronistas discordam, e quem não souber a razão que ambos tinham pera fazer esta deferença não sei como isto julgarão. Porém, pois nos Deos trouxe em nosso tempo história per onde fôssemos certos da genealogia deste bem-aventurado dom Anrique, primeiro fundamento da casa de Portugal, poderemos dar razão a quem dela tiver nescesidade. E porque no Terceiro Livro deste parte, e principalmente no Quarto da outra se manifesta mui claro e per extenso as cousas do pai de dom Anrique e as suas e a razão por que veo a estes reinos d´Espanha se deixa aqui de tocar. Somente diguo, segundo o que nestas partes vi, que dom Anrique era neto de Clarimundo, as grandezas e obras do qual neste volume e em parte do outro com tanto louvor e glória sua se manifestam, que foi rei de Hungria per falecimento de Adriano, seu pai, e por parte de Clarinda, sua molher, herdou o império de Constantinopla, ao qual sucedeo nestes dous senhorios dom Sancho, seu filho, pai de dom Anrique. Assi que não sem causa diz um coronista que veo de Constantinopla e o outro que era natural de Hungria, pois seu pai, neste tempo, estes dous tão grandes senhorios governava e pesuia.
CARTAS
[61r {LXII}] Carta de Clarimundo a Clarinda.
Quem se aventura onde a vida é duvidosa, mais estima perdê-la por acabar que a ter sem esperança. Mas que farei eu, senhora, pois todalas vossas cousas são contrairas a meu descanso e prósperas pera viver, que se a morte me quiseram dar, os pirigos que passei na contenda que os temores e receos tiveram com minha fé quando me fez cometer esta ousadia bem o poderam fazer, mas leixaram-me vivo pera sentir quam pouco sentis o que sinto e morto pera o bem qu´espero, inda que nam sei o que espere, ca meu mal não quer que se diga nem que se possa sofrer. Este é o maior que lhe destes: vencer as palavras porque se não saibam suas obras, com que me tem posto em tal estado, que me não fica mais bem que o conhecimento de quam ditoso fui em vos conhecer. Todolos outros sentidos me negam por confessar, todos me desobedecem por vos querer; uns me fazem mais triste que contente, outros mais ledo que arrependido; e com estas deferenças tenho tamanha guerra comigo que ando fogindo de mim.
Mas ai de mim! Onde irei sem vós ou sem mim? Porque meus cuidados me levam onde já vossas lembranças m´estão esperando com outros maiores. Nunca me leixam o desejo, trazendo-lhe a memória cousas que não merece, inda que minha fé tem tanto merecimento que basta pera me dardes por galardão mais descanso do que tenho e menos mal do que sinto, tão temeroso do que receo, que não sei se algum contentamento me achará vvio pera o receber. Mas vossas cousas tem tanta força que podem dar vida a mesma morte. Veja qualquer que sinta, que em ambas me fará mercê.
[62r-62v] Carta de Clarimundo a Clarinda.
Não sem causa, senhora, temia eu este desengano, pois sempre minha fé com tal galardão agalardoastes e ele me fora grande contentamento se vós teveres algum de me matar ou vos lembrasse que o fazíeis por vos servir, mas sois tão descuidada dos meus cuidados e amiga do que não quero, que me dais a vida porque sinta vossas obras, e negais-me a morte por não ver o seu descanso, tudo pera sentir máguoas d´outros mores desenganos, que me fazem perder a esperança, e não o cuidado dela, porqu´ele me mata, ele me contenta, ele me faz que não sei de que me queixe, pois meu bem é meu mal e sem ambos não posso viver. Mas que vida, senhora, pode ser esta em contendas tão diferentes, favorecidas de vós e sentidas de mim, sem me darem tempo pera as dizer nem dita pera acabar? Pondes-me nestes estremos não sei porquê nem vo-lo mereci.
Minha afeição certeficou-vos sua firmeza, a razão obedeceo-vos, a liberdade entregou-se, a vontade concedeo, a memória nunca vos perde. Todalas cousas que tinha perdi pera viver e tenho pera vos servir. Não acho em mim quem me condane e sinto quem me mata –grave cousa pera sofrer: padecer sem culpa e penar com causa-. Isto me traz nem comigo nem sem mim, nem espero o que desejo nem vejo o que espero. Tudo me faz incerto pera descansar e ditoso pera tantos males sentir. E pois minha ventura assi quer e vós lho mandais, venham as dores com sua dor e o pesar com seus cuidados, que o meu contentamento é tão grande pera os aceitar que os há de vencer e eles não a ele, e então o cansarão se algũa hora descansarem.
[63v] Carta de Clarinda a Clarimundo.
Esta é assaz galardão d´algũa cousa que dizeis por minha causa sentir, pois nela aventuro mais do que vós té gora perdestes, ca muito vai d´aventurar a honra a perder palavras. Leixai esse cuidado oucioso r leixar-me-ão temores do que se pode cuidar de mim. Nam queirais que vossas cousas sejam causa pera condenar as minhas. Lembre-vos que nunca se algũa fez com tanto resguardo que o tempo não mostre. Isto vos fique por certo desengano ante que vos mais engane o desejo.
[111v] Carta de Clarinda a Clarimundo.
Este só bem tem a necessidade: ser tão engenhosa que todolos remédios cata pera ter algum de seu descanso, se este que lhe tantas lágrimas custa aproveitasse a esta donzela estimá-lo-ia em muito. E pois cuida que me deveis ou vos devo fazerdes algũa cousa por mim, peço-vos que seja de vós ajudada como é bem que o sejam aquelas que vos hão mister.
PROFECIAS
[129v/a] Ó tu, imensa e sacra verdade,
verdade da suma e clara potencia,
que mandas, que reges com tal providência
as cousas que obraste na mente e vontade!
Ó trina em pessoas e só divindade,
infunde em mim graça pera dizer
as obras tão grandes que hão de fazer
os reis portugueses com sua bondade!
[129v/a] No tempo c´Afonso, o Emperador,
der a seu sangue por dare galardão,
aqueles que dor nunca sentiram
em o derramar por seu Redentor
dará também, por mais seu louvor,
a Anrique em dote matrimonial
as terras da terra do grão Portugal
pera as pessoir como justo senhor.
Aqueste com ferro mui vitorioso,
rompendo as carnes de contos de mouros,
leixará d´obras tão grandes tesouros
quanto no céo estará triunfoso,
sucedendo a ele o mui generoso
El-Rei dom Afonso Anriquez Primeiro,
primeiro em nome e em verdadeiro
rei enviado per Deus glorioso.
O campo d´Ourique já gora é contente
[129v/b] da grande vitória que nele será,
onde Cristo em carne aparecera
mostrando as chagas pruvicamente,
ao qual este rei santo e prudente
dirá: «Ó, meu deus, a mim pera que
lá aos hireges, imigos da fé,
da fé em qu´eu arço d´amor mui ardente».
[129v/b] Ó armas divinas, c´aqui sereis dadas,
dadas por Cristo por mais perfeição
ter-vos-ão todos tal veneração
quanto com obras sereis exalçadas,
porque pelas terras ireis espalhadas
banhadas em sangue de vossa vitória,
cobrando d´imigos tão grande memória
que sobre todas sereis colocadas.
[130r/a] E tu, esforçado dom Sancho, serás
aquele a quem eles hão de seguir
té chegar ao rio de Guadalquebir,
que com sangue d´imigos escurecerás;
e por mais mereceres, depois tomarás
a cidade de Silves contraminando
e almas de corpos sempre tirando
de corpos de mouros c´ali matarás.
Alcácer do Sal será bom penhor,
ó mui poderoso dom Afonso Segundo,
de tuas obras cá neste mundo
e no outro coroa de conquistador,
e partindo par´ele mui vencedor
aos teus leixarás dom Sancho Capelo
por rei de virtudes e obras de zelo,
de zelo mui santo e de mente senhor.
Bolonha, Bolonha quant´hás de perder,
e tu Portugal, quanto hás de cobrar
no terceiro Afonso que se há de chamar
rei do Algarve por seu grão saber.
Aqueste, por mais se enobrecer,
dourados castelos em campo vermelho
poerá na orla das quinas e espelho
em que todalas armas se poderão ver.
[130r/b] Paderne, Alvor, Selir e Loulé
e Faro sentem já o destorço
do grande poder e bravo esforço
dele, que há de pugnar pola fé
e o santo favor que foi sempre, e é,
em ajuda das obras de tal calidade
será nestas suas com prosperidade
que as erga, exalce e ponha em pé.
Ó, justo Dinis, tão noble e clemente,
lhe sucederá como filho primeiro,
em obras de príncipe mui verdadeiro
e em todalas cousas sabido, prudente,
e por mais estender seus povos e gente,
fundará vilas e nobres logares,
igrejas maiores, sagrados altares,
em que se louve por mui excelente.
O Quarto Afonso será comovido
com roguos daquele seu sangue amado
que leixe o seu reino por ser no Salado
em ajuda e socorro d´El-Rei, seu marido,
[130v/a] e daqui ficará assi tanto temido
antre enfiéis e danados pagãos,
quanto no conto dos nossos cristãos
pera sempre louvado e mui conhecido.
O rigor da justiça te há de leixar
a ti, dom Pedro, dom Pedro Primeiro,
nome de cru, por ser verdadeiro
verdugo daqueles que males obrar,
mas tu por´ela hás de ter e cobrar
a glória que dão a quem a mantém
e serás isento dos males que têm
aqueles que julgam por s´afeiçoar.
Bem vejo Fernando andar agastado
e mui descontente por um grande mal,
sendo o primeiro que em Portugal
há de sentir tão grave cuidado,
mas não leixará seu real estado
isento de fama e obra famosa,
pois cercará a mui populosa
Lisboa de novo, com muro dobrado.
Santa Maria d´agosto será
de ti, dom João, de boa memória,
memória honrosa de quanta vitória
neste tal dia o teu braço terá,
e onde se mais craramente verá
quanto em ti cobrou Portugal,
será naquela batalha real
que daqui a grã se ordenará.
E a loba marinha e grã tragadora,
ceita danosa aos navegantes
não tem poder nem forças posantes
que as tuas forças resista ũa hora.
Mas fazendo-se serva de grande senhora
[130v/b] já t´obedece, magnânimo rei,
rei que por lei e povo e grei
darás teu sangue sem algũa demora.
Ó Duarte primeiro, se podesses viver
mais de seis anos depois de ser rei,
que povos e terras que vejo e sei
que mui facilmente poderás vencer,
mas tu soubeste milhor escolher,
leixando esta vida tão trabalhosa,
e ir per´aquela onda gloriosa,
madre de deus havemos de ver.
Tânger e Alcácer não hão d´escapar
do grande poder D´Afonso, o Quinto,
ó Joane, seu filho, que obras que sinto
que hás de fazer quando se entrar
a vila D´Arzila pelo Albacar,
isto em tempo que a tua idade
o peso das armas com dificuldade
nas brandas carnes poderá sustentar.
Ó tempos, ó tempos, tempos de guerra,
de guerra com mouros e paz com cristãos
[131r/a] quem fosse então por beijar as mãos,
as mãos que terão por divisa espera,
ó divinas obras, nas quaes se esmera
a fama famosa do grã Manuel,
quem se visse naquele tropel,
que vós cercareis as partes da terra.
Os maos e ingratos c´a Cristo mataram
per ele tão santo e poderoso rei
serão convertidos, tornados à lei,
à lei da graça que eles negaram
e assi cobrarão o que nunca cobraram
depois de perder o que tinham perdido
com suas maldades e endurecido
mao coração que nunca abrandaram.
[131r/b] Bem como rio que com invernada
dirriba e estraga o que acha diante,
e se é empedido, se faz mais possante
pera sair com fúria dobrada.
Assi a força deste será esmerada
em quem a ela quiser resistir,
e a quem na obedecer e servir
mansa, pacífica e mui aplacada.
Que falas, que dizes ou que ouviste
Çafim com todalas tuas cabildas,
pois tão temeroso já gora tomildas
as armas daquele que tu nunca viste?
Não temas, não temas, que não serás triste
quando te vires em poder de quem
a todos teus males tornará em bem,
em bem repousado que nunca sentiste.
E tu, Aduquela, com teu Azamor,
também vos vejo com ferro lavrados,
e com sangue dos vossos também regados
que sesta-feira será bom penhor,
penhor do que digo e grande louvor
das armas daquele que isto farão,
as quaes de contino assi lavrarão
as terras d´imigos per este tenor.
[131v/a] Afutos, Asas, com os de Cumânia
e seu poderoso e grande Xerife,
vendo um seu pequeno esquife
se ajuntarão com os de Acania,
e vindo todos com grande alegria,
entraram carregados com cheo alforje
na cidade d´ouro, chamada São Jorge,
por se achada naquele tal dia.
Os crus andiotes da grã Teradanda
com os Atius, Lanus, Beramus,
sabendo a nova dirão ora sus
vamos servir aquele que manda
terras e mares, e seu nome anda
por todalas partes tanto temido,
que dá poder ao menos valido
e ao mais poderoso dispõe e desmanda
E aquele grã Cabo de Boa Esperança,
que tanta de terra esconde ao mundo,
virá mui alegre com rostro jocundo
a lh´obedecer sem algũa tardança,
de terras e povos fazendo ũa dança
vindo cantando com doce harmonia
[131v/b] estas palavras de grande alegria:
«Vivamos contentes com tanta bonança,
com tanta bonança, pois temos razão
que Deus é conosco, segundo o pubrica
o seu nome santo que nos testifica
vivermos a vida sem mal e paixão,
e na otra cobrar e ter salvação
das almas c´agora temos danadas,
seguindo todalas suas pisadas,
pisadas de casta e limpa tenção».
E quem a todos trará a dianteira
e pera a tal festa estará mais a pique,
será o fiel e leal Moçambique,
vindo Çofala por sua bandeira,
a qual é louvada por ser tisoureira
do mais precioso e prezado metal,
e com vozes alegres dirá: «Portugal
me fez pera sempre sua prisoneira».
E nesta envolta virá mui contente
a Ilha do Santo em grelhas asado,
trazendo de frol um rico toucado
da frol qu´ela tem por mas excelente,
cercando-a em torno tod´aquela gente
d´ilhas pequenas suas comarcãs,
mostrando-se todas muito loçãs,
por serem sojeitas ao rei do ponente.
Quilua, Mombaça, Melinde, Patém,
Baraba, cidade e Abalamdarim,
com a fraca gente do forte Apenim,
Zapenda, Guardafu e o cabo que tem,
trarão consiguo a grande Adém,
inda que venha sangoentada
e com sua dura cabeça quebrada
das forças do rei d´Aquém e d´Além.
[132r/a] E o reino d´Ormuz, Macrã e Nautaques,
Diulicinte, Rezbutos, Cambaia,
com os Guzarates, que é gente qu´em saia
mal sua vida em guerreiros embates,
e Meliquiaz, com seus baluartes,
com eles virá também nesta envolta,
e Chaul e Dabul a rédea solta
e Guoa, tomada per muitos combates;
Batigala, Angediba e Onor,
com toda a grã terra de Malabar
em tão alegre tempo não hão de negar
companhia ao forte Cananor,
o qual se nomea por grande senhor
em ser guardado e mui defendido,
com Naires fildalgos c´aceitam partido
de morrer e viver por pouco valor.
[132r/b] Também virá qui a forte cidade
Calecut e Cochim, e a ilha Ceilão,
onde se acha povo cristão,
que tem e mantém algũa verdade,
ainda que faz grã neicidade,
na romagem do cabo Camorim,
dando às vidas maguoda fim,
cuidando nisto obrar piadade.
E os quelins, chatins nomeados,
por ser estrangeiros e não mercadores,
ajuntar-se-ão com quantos primores
acharem naqueles que são guerreados
dos de Narsíngua pouco forçados,
por mínguoa d´armas e coração,
que em corpos e boa desposição
são bem asaz proporcionados.
E postos em ordem mui concertada
esperarão pola rica Malaca,
que vem carregada com ũa carraca
das terras e povos de qu´ela é amada,
ond´entra Sião com sua enseada,
e Patane, que tem por desenfadamento
ver guerra de galos e o vençimento
que cada um há na sua liçada.
Champa e a China, com a cidade
que perdera o povo dos persas,
passando per terras muito diversas,
logo virá com grã brevidade
em busca dos lequos, que tratam verdade,
levando consiguo a Burnea gente,
[132v/a] e ajuntados todos, farão um presente
de fé e amor e grã lealdade.
O qual trarão por mui certo sinal,
c´ainda que fossem os derradeiros,
naquele tempo serão os primeiros
pera servir e amar Portugal.
E Çamatra, que corta a equinocial
com todolos reinos e povos c´abarca,
ajuntar-se-á com a grande comarca
daquele arcepélego oriental.
E neste alegre e novo prazer
e grã triunfo que todos farão
entre Joa, Angane e Bimão,
armado das forças e forte poder
de Pantasilea, que quis perecer
n´antiga batalha daqueles troianos,
que no cabo e fim de tempos e anos
per grego engano foram fenescer.
Pois Banda, com todolos reis de Timor,
Abona, Maluco, e as mais não diguo,
todos virão trazendo consiguo,
ũas amor e otras temor,
porqu´estes dos meios são o tenor
per onde se rege a humana vida
e eles a fazem ter mui comedida
aos grandes reis e fraco pastor.
[132v/b] Agora, agora em feitos maiores
me dá tu senhor dobrada ajuda,
pois minha língoa se torva e muda
nas obras que vejo de tantos louvores;
não negues aqui o favor dos favores,
pois o nunca negaste a quem to pedio
e em sua fé levou e sentio
que tu és o señor dos grandes senhores.
A ti, Portugal, qu´estás descontente,
quero eu dar alegre esperança
com que dos males hajas vingança
dos males passados da tua gente,
a justa justiça do muito clemente
El-Rei dom João, deste nome terceiro,
fará com que vivas em mui verdadeiro
descanso eterno, e muito contente.
E quando se vir em força perfeita
de ponir o mal e a quem merecer,
dar galardão por não perecer
a sua verdade e via dereita,
então será voz da ovelha aceita
no meio dos altos e mui fortes prados
e os mansos cordeiros, fartos guardados,
do lobo danado c´a vida lh´espreita.
Pois tu, que não queres com sono acordar,
espera, espera um grande despejo,
ó, meu Deus e Senhor, quantas obras vejo
em que não vejo per onde entrar!
CIC. Coimbra, João de Barreira, 1555
ANO EDIÇÃO
EDITOR
João de Barreira.
Trabalhou como impressor do rei e para a Universidade de Coimbra. Laboralmente, mexeu-se entre Coimbra, Lisboa e Braga. Nas suas obras só fez uso de caracteres góticos. De acordo com Martins de Carvalho , João de Barreira desenvolveu a sua actividade tipográfica, junto de João Álvares, de 1548 a 1586. Há notícias de que trabalhou até 1594.
CIC. Lisboa, António Álvarez, à custa de André Lopes, 1601
ANO EDIÇÃO
EDITOR
António Álvarez.
Teve sua actividade em Lisboa entre 1588 e 1600. Em 1597 trabalhou em Alcobaça junto de Alexandre de Siqueira. Também colaborou com Marcos Borges, António Ribeiro e Jorge Rodrigues. Exerceu como impressor do arcebispo D. Miguel de Castro. Segundo António Joaquim Anselmo, imprimiu perto de 50 obras em carácter romano e não usou marca nenhuma. De acordo com a opinião de Loff, os seus trabalhos não se caracterizam pela sua perfeição tipográfica.
PARATEXTOS FRONTISPÍCIO
[{1r}] A Primeira Parte da Crónica do Emperador Clarimundo, donde os reis de Portugal descendem. Em Lisboa, impressa con licença da Sancta Inquisição e Ordinário, por António Álvarez. Ano de 1601. À custa de André Lopez, mercador de libros.
[{1r}] A Primeira Parte da Crónica do Emperador Clarimundo, donde os reis de Portugal descendem. Em Lisboa, impressa con licença da Sancta Inquisição e Ordinário, por António Álvarez. Ano de 1601. À custa de Jerónimo Lopez, mercador de libros.
PARATEXTOS PRÓLOGOS
[{5r}] Prólogo feito depois desta obra impressa, ao mui alto e poderoso rei Dom João, Terceiro deste nome.
Per João de Barros seu criado.
Amor, Favor e Temor, rei mui poderoso, príncipe de justiça, têem tanta força em todalas cousas, que nenhũa se pode fazer sem algum deles, e às vezes ũa com todos. E assi como o primeiro há de permanecer com nossa alma, assi antecede aos dous nas obras que neste mundo faz, ca logo leva hũa ordem firme, hum concerto seguro, ũa liberalidade franca, que os outros não têm. E ele me fez despor os dias passados pera servir Vossa Alteza na trasladação desta Crónica. E sabendo isto de mim, usastes tão liberalmente comigo, dando-me a isto favor, que em espaço d´oito meses acabei de a trasladar. Da qual, a vossa real casa leva a maior glória, porque ela foi o claro estudo em que toda minha vida empreguei. E per cima das arcas da vossa guarda-roupa, pubricamente, como muitos sabem, sem outro repouso, sem mais recolhimento, onde o juízo quieto podesse escolher as cousas que a fantesia lhe representava. Fiz o que meu amor, e vosso favor, ordenaram. E como colhi este fruito mais temporão do que divera, mandei-o imprimir. No qual tempo, per vontade de Suma Potência, recebestes o Real Cetro digno de vós, e vós muito mais dele. E este cuidado de governar, reger, prover todalas particularidades de vossos Povos e Reinos, me fizeram estimar em muito o que tinha começado. Porque quando lho deregi no seguinte Prologo, as menos ocupações que então tinha lhe faziam tomar algũa pera emendar meus erros. Mas agora na segunda mão, que é a mais trabalhosa, conhecendo a fraqueza de meu estilo e a grandeza de vosso real estado, fizeram-me duvidar o que faria: se perder o gasto que tinha feito na impressão, entregando o meu trabalho ao fogo ou sair a luz com ele. E nestas dúvidas, sobreveo o temos da fazer tal desacatamento ás cousas onde vossa Alteza posera os olhos. E deste temor, tomei ousadia pera dar fim ao que me inda não satisfaz. Porque todalas obras têm arrependimento: as boas, quando não trazem o efeito pera que se ordenam; as más por se fazerem; as duvidosas por terem o fim incerto.
Este é outro novo temor com que as primícias de minha pobreza se apresentam ante Vossa Real Magestade, a que peço, não como elas merecem, mas se de vós espera, sejam inda favorecidas.
[{5v-6v}] Prólogo sobre a traladação da Primeira Parte da Crónica do Emperador Clarimundo, donde os Reis de Portugal descendem. Deregido ao esclarecido príncipe Dom João, filho do mui poderoso rei Dom Manuel, primeiro deste nome. Per João de Barros, seu criado.
Não tem a natureza, mui alto e esclarecido Príncipe, tão desordenada ordem na repartição de suas graças e perfeições, que a cada um dos humanos não dê ũa em especial, e quem se queixar dela não será com razão. Porque se o não dotou d´esforçada ousadia nas cousas do militar exercício, deu-lhe divino conselho pera as saber governar; se lhe tirou a perfeição de perfeito orador, não lhe negou avondança do versificar; se o desfaleceo no conhecimento das consonâncias da Música, suprio-lhe esta míngoa com desposição, graça, gentileza e bom ar em vestir e fazer cousas que cobrem o desfalecimento que têm as outras. E porque todas estas, e as que dão perfeição sem tacha, mui poucas vezes, ou nunca, se viram em ũa só pessoa, disse Homero: “Não deu Deos a um todalas cousas”. Mas isto se não entende em Vossa Alteza, pois, além das virtudes que per mão divina em Vossa Real Pessoa foram influídas de todalas graças que a natureza tinha, vos fez justamente verdadeiro posseedor. E bem o tendes mostrado, príncipe excelente, des o princípio de vossa infância, té o presente tempo da perfeita adolescência, usando de cada ũa nos casos e tempos oportunos pera que foram ordenadas, sem entremeter as de prazer em tempo de pesar, mas per ordem destrebuídas, que são em Vossa Real Senhoria exemplo pera quem perfeitamente quiser [{5r}] obrar.
E como eu, Ilustríssimo Príncipe, fosse criado sob a deciplina destas magníficas obras que no discurso de sua vida tem feito, notei quão grande imigo era da ouciosidade danosa, e nesta parte, pois minha baixa calidade a mais não podia suprir, quis imitar seu virtuoso exercício, lendo as vidas e obras dos passados e excelentes príncipes, que tanto exemplo com elas deram, até o tempo d´El-Rei, nosso senhor e progenitor vosso, que assi a todas escureceo como o claro Sol às Estrelas cega, alcançado victória per mar, per terra e senhorio de povos, em menos tempo do que a vontade os pode desejar. E, portanto, com verdade se diz disfalecer-lhe mundo pera o conquistar e não victória, saber e indústria pera outros alcançar, se os i houvesse neste que no outro, segundo suas pias e virtuosas obras assaz têm ganhado de glória. E ainda que Vossa Alteza dele herdasse não inclinardes os ouvidos a cousas de vosso louvor, não me pareceo justo chegar a ũas e a outras sem pagar o débito e tributo per Deos ordenado, que é louvar a quem bem obra, porque com o tal louvor damos graças a ele, eterno ministrador das virtuosas operações e miraculosas façanhas. Pois quem será de tanta ingratidão, Príncipe mui exclarecido, que se não entremeta a querê-las louvar, principalmente aqueles com quem nesta parte do bom dizer, a natureza comunicou sua graça? E porque quanto me ela aqui tem negado, acrecentou em desejo de vos servir, beijarei vossas reais mãos, perdoar a meu fraco e atrevido engenho, cometer estes cometimentos de louvor, pois a outras pessoas de mais saber e autoridade é permitida licença de navegar pelo mar de suas grandes obras, dignas de tal memória, porque a pouca suficiência de meu engenho, ainda agora em pequenos rios pode ser perdida, não tendo idade e estudo pera em tão alto golfão me entremeter, ao qual Lívio, Salústio, Virgílio nem Lucano creo que deram princípio, pois tão dificultoso lhe fora d´achar meo e fim. E como eu, Príncipe mui poderoso, nas obras qu´estes composeram gastasse o que me restava de tempo, depois que em outras cousas vos servia, ofereceo-se caso que todo em vosso serviço empregado fosse. Digo isto, preclaro Senhor, porque antre alguns alemães e estrangeiros que com a Rainha, nossa senhora, a estes Reinos de Portugal vieram, foi Carlim Delamor, homem fidalgo e bem docto em todalas cousas que a tal pessoa convinham, e como as suas me contentavam, trabalhei por alcançar dele sua conversação e amizade. E conhecendo ele isto de mim, deu-me tanta parte dela, que satisfez a meu desejo. E enquanto nestes Reinos esteve, antre muitas cousas de passatempo que neste tínhamos era contar ele as grandezas dos Emperadores d´Alemanha e Constantinopla, com tanta ordem e concerto, que parecia ter o próprio original delas na memória. E as que ali lustravam em mais admiração e grandeza eram do Emperador Clarimundo, que, segundo são maravilhosas, fazem presumir serem mais favor d´escriptores que verdadeira relação da verdade. Porém, pois das antigas cousas não temos outra certeza, é necessário darmos-lhe tanta fé quanta nos eles testificam, quanto mais, que a esperiência das nossas presentes autorizam todalas suas passadas. E quem nesta verdade duvidar, ponha os olhos na grandeza das obras d´El-Rei, vosso padre, e desfará a roda do pouco crédito que a todalas outras der. E já no tempo deste, não menos Cristianíssimo que esforçado Príncipe, mostrava ũa figura do que os de sua linhagem no seu fariam, porque a ele escolheo Deos pera origem dos Reis de Portugal, donde Vossa Alteza havia de descender, como adiante neste primeiro capítulo se dirá. E porque somente os Húngaros e Gregos de suas memoráveis façanhas tinham lembrança, polas em sua lingoagem terem escriptas, quis trespassar esta Primeira Parte de sua Crónica em a nossa Portuguesa, porque a nós suas cousas também púbricas fossem, pois nos tocam pola parte que dele recebemos [{5v}] que foram tão cristianíssimos e poderosos reis, como os Portugueses têm alcançado, sendo primeiro da Suma Potência concedido.
E ainda, magnânimo Príncipe, que seja digno de muita reprensão, pelo atrevimento que tomei, em trasladar cousa que com divina eloquência divera ser relatada, não creo que o serei em tanto extremo como o fora de meu desejo em não obrar obra de que Vossa Alteza fosse servido, pois este é o fim pera que quero longa vida e esta vontade me desculpa da culpa que por isso me quiserem dar. E também, consirando eu ser feitura vossa, acodio-me um fervor de fé que não podia alguém reprender este atrevimento, crendo que há de ser favorecido da vossa liberal vontade, como todalas cousas zelosas de bem obrar o são. E este favor dará tanto lustro ao tempo que daqui empreguei que cegará a quem lhe quiser poer nome de perdido. E posto que deste perigo seja salvo, não creo ser mui seguro do que acharam quantos escreveram, porque defícil é escapar alguém da diversidade dos juízos ouciosos, os quaes têm um parecer pera julgar e outro sentir pera fazer, e todos emendão o alheo, e poucos sentem o seu. Mas primeiro que minha fama seus combates sinta, beijarei vossas reaes mãos, mandar prover esta tão grande e excelente Crónica com milhor envenção e mais avondosa eloquência e inventiva elegância do que se nela por minha rudeza achará. E com este seguro real, de real mão recebido, serei salvo do impectuoso murmurar.
Ano 1601.
PARATEXTOS LICENÇAS
[{2r}] Vi esta Primeira Parte da Crónica do Emperador Clarimundo, que já foi impressa nestes Reinos de Portugal. Assim como vai não tem cousa algũa contra nossa Santa Fé e bons costumes; antes é História donde se pode tirar proveito, que o Autor, debaxo daquelas ficções que conta, pretende pintar um príncipe esforçado, casto e virtuoso, amigo de honra e de verdade, partes que todos os homens hão de pretender. E esta é a rezão por que São Basílio era afeiçoado a ler Homero, por o proveito que tirava das alegorias que em sua Poesia trazia encubertas, como ela confessa: Homilia, 24, De legendis libris Gentilium. E ainda que este livro, e outros semelhantes, contêm outras cousas várias e mui diferentes, direi o que diz o mesmo São Basílio no mesmo lugar; e Plínio, Libro 2, Capít. 7: “A abelha, a muitas hervas dece, e não de todas colhe”. Finalmente, a mim me parece que é obra que se pode outra vez imprimir.
Frei Manoel Coelho.
Vista a informação, pode-se imprimir esta Crónica do Emperador Clarimundo, e depois de impressa, torne a este Conselho pera se conferir e se dar licença pera correr.
Em Lisboa, 7 de Maio de 1598. Marcos Teixeira, Martim Afonso de Melo.
PARATEXTOS CÓLOFON
[{212r}] Acaba-se a Primeira Parte da Crónica do Emperador Clarimundo, donde os Reis de Portugal descendem, tirada de lingoagem húngara em a nossa portuguesa, por João de Barros.
Impressa, com licença da Sancta Inquisição, por António Álvarez, ano de 1601.
PARATEXTOS OUTROS
[{7r}] Concordância que o trasladador faz antre dous Coronistas, sobre a vinda de dom Anrique nestes Reinos de Espanha, e sobre a sua Genealogia.
Ainda que isto seja fora da ordem e princípio desta Crónica, por ser mui necessário à trasladação dela, pareceo cousa justa e devida tocar aquilo de que tem necessidade, porque aqueles que as Crónicas dos Reis de Portugal e Castela lerem não tenham algũa dúvida em que possam embicar. Digo isto porque, segundo Duarte Galvão no princípio da Crónica que d´El-Rei dom Afonso Anrique compôs, primeiro deste nome em Portugal, contando da vinda de dom Anrique, seu pai, no tempo d´El-Rei dom Afonso de Castela, que Emperador de Espanha se chamava, diz ser este dom Anrique segundogénito d´El-Rei d´Hungria e de ũa irmã do conde dom Reimão de Tolosa, que com o conde dom Reimão de São Gil todos juntos a estes reinos de Espanha vieram; e Mossém Diogo de Valera, na sua Valereana, tem o contrairo, dizendo como dom Anrique era natural de Constantinopla e que, servindo na guerra a El-Rei dom Afonso de Castela, fazendo obras dignas de tal galardão, lhe dera sua filha Tareija por ligítima molher e, em dote, as terras que então em Portugal aos mouros eram tomadas, como se mais largamente na Crónica d´El-Rei dom Afonso mostra. Pois parece nesta contrariedade da pátria e natureza de dom Anrique que estes dous coronistas discordam e quem não souber a razão que ambos tinham pera fazer esta diferença, não sei como isto julgarão. Porém, pois nos Deos trouxe em nossos tempos história per onde fôssemos certos da genealogia deste bem-aventurado dom Anrique, primeiro fundamento da casa de Portugal, poderemos dar razão a quem dela tiver necessidade. E porque no Terceiro Livro desta parte, e principalmente no Quarto da outra fé manifesta mui claro, e por extenso as cousas do pai de dom Anrique, e as suas e a razão, porque veio a estes Reinos de Espanha se deixa aqui de tocar. Somente digo, segundo o que nestas partes vi, que dom Anrique era neto de Clarimundo, as grandezas e obras do qual neste volume, e em parte do outro com tanto louvor e glória sua se manifestam, que foi rei de Hungria per falecimento de Adriano, seu Pai; e por parte de Clarinda, sua molher, herdou o império de Constantinopla, ao qual sucedeo nestes dous senhorios dom Sancho, seu filho, pai de dom Anrique. Assi que não sem causa diz um coronista que veo de Constantinopla e outro que era natural de Hungria, pois seu pai neste tempo estes dous tão grandes senhorios governava e pessuia.
CARTAS
[75r-75v] Carta de Clarimundo a Clarinda.
Quem se aventura onde a vida á duvidosa, mais estima perdê-la por acabar que a ter sem esperança. Mas que farei eu, señora, pois todalas vossas cousas são contrairas a meu descanso e prósperas pera viver, que se a morte me quiseram dar, os perigos que passei na contenda que os temores e receos teveram com minha fé, quando me fez cometer esta ousadia bem a poderam fazer. Mas leixaram-me vivo pera quão pouco sintis o que sinto, e morto pera o bem que espero, inda que não sei o que espere, ca meu mal não quer que se diga nem que se possa sofrer.
Este é o maior que lhe destes: vencer as palavras porque se não saibam suas obras com que me tem posto em tal estado que me não fica mais bem que o conhecimento de quão ditoso fui em vos conhecer. Todolos outros sentidos me negam por vos confessar, todos me desobedecem por vos querer; uns me fazem mais triste que contente, outros mais ledo que arrependido, e com estas deferenças tenho tamanha guerra comigo que ando fogindo de mim, mas ai de mim! onde irei sem vós, ou sem mim? Porque cuidados me levam onde já vossas esperanças m´estão esperando com outros maiores; nunca me leixam o desejo, trazendo-lhe a memória cousas que não merece, inda que minha fé tem tanto merecimento que basta pera me dardes por galardão mais descanso do que tenho, e menos mal do que sinto, tão temeroso do que receo que não sei se algum contentamento me achará vivo pera o receber. Mas vossas cousas tem tanta força que podem dar vida a mesma morte. Veja qualquer que sinta, que em ambas me fará mercê.
[76v-77r] Carta de Clarimundo a Clarinda.
Não sem causa, senhora, temia eu este desengano, pois sempre minha fé com tal galardão agalardoastes e ele me fora grande contentamento se vós tevéreis algum de me matar, ou vos lembrasse que o fazíeis por vos servir, mas sois tão descuidada dos meus cuidados e amiga do que não quero, que me dais a vida porque sinta vossas obras, e negais-me a morte por não ver o seu descanso, tudo pera sentir mágoas d´outros mores desenganos que me fazem perder a esperança, e não o cuidado dela; porque ele me mata, ele me contenta, ele me faz que não sei de que me queixe, pois meu bem é meu mal e sem ambos não posso viver. Mas que vida, senhora, pode ser esta em contendas tão diferentes, favorecidas de vós e sentidas de mim, sem me darem tempo pera as dizer nem dita pera acabar? Pondes-me nestes estremos não sei porquê, nem vo-lo mereci; minha afeição certeficou-vos sua firmeza, a razão obedece-vos, a liberdade entreou-se, a vontade concedeo, a memória nunca vos perde. Todalas cousas que tinha perdi pera viver e tenho pera vos servir. Não acho em mim quem me condene e sinto quem me mata –grave cousa pera sofrer: padecer sem culpa e penar com causa-, isto me traz nem comigo nem sem mim, nem espero o que desejo, nem vejo o que espero, tudo me faz incerto pera descansar e ditoso pera tantos males sentir. E pois minha ventura assi quer e vós lho mandais, venham as dores com sua dor e olarimundo a Clarinda. pesar com seus cuidados, que o meu contentamento é tão grande pera os aceitar, que os há-de vencer, e eles não a elle, e então o cansarão se algũa hora descansarem.
[78r] Carta de Clarinda a Clarimundo.
Esta é assaz galardão d´algũa cousa que dizeis por minha causa sentir, pois nela aventuro mais do que vos té gora perdestes, ca muito vai d´aventurar a honra a perder palavras. Leixai esse cuidado oucioso e leixar-me-ão temores do que se pode cuidar de mim. Não queirais que vossas cousas sejam causa pera condenar as minhas. Lembre-vos que nunca se algũa fez com tanto resguardo que o tempo não mostre. Isto vos fique por certo desengano, ante que vos mais engane o desejo.
[140r] Carta de Clarinda a Clarimundo.
Este só bem tem a necessidade: ser tão engenhosa que todolos remédios cata pera ter algum de seu descanso, se este que lhe tantas lágrimas custa, aproveitasse a esta donzela estimalo-ia em muito. E pois cuida que me deveis, ou vos devo fazerdes algũa cousa por mim, peço-vos que seja de vós ajudada, como é bem que o sejam aquelas que hão mister.
PROFECIAS
[163r/a] Ó tu, imensa e sacra verdade,
verdade da suma e clara potencia,
que mandas, que reges com tal providência
as cousas que obraste na mente e vontade!
Ó trina em pessoas e só divindade,
infunde em mim graça pera dizer
as obras tão grandes que hão de fazer
os reis portugueses com sua bondade!
[163r/a] No tempo c´Afonso, o Emperador,
der a seu sangue por dar galardão,
a aqueles que dor nunca sentiram
em o derramar por seu Redentor
dará também, por mais seu louvor,
a Anrique, em dote matrimonial,
as terras da terra do grão Portugal
pera as pessoir como justo senhor.
Aqueste com ferro mui vitorioso,
rompendo as carnes de contos de mouros,
leixará d´obras tão grandes tesouros
quanto no céo estará triunfoso,
sucedendo a ele o mui generoso
El-Rei dom Afonso Anriquez Primeiro,
primeiro em nome e em verdadeiro
rei enviado per Deus glorioso.
O campo d´Ourique já gora é contente
[163r/b] da grande vitória que nele será,
onde Cristo em carne aparecera
mostrando as chagas pubricamente.
Ao qual este rei santo e prudente
dirá: «Ó, meu deus, a mim pera que
lá aos hireges, imigos da fé,
da fé em qu´eu ardo d´amor mui ardente».
[163r/b] Ó armas divinas, c´aqui sereis dadas,
dadas por Cristo por mais perfeição
ter-vos-ão todos tal veneração
quanto com obras sereis exalçadas,
porque polas terras ireis espalhadas
banhadas em sangue de vossa vitória,
cobrando d´imigos tão grande memória
que sobre todas sereis colocadas.
[163v/a] E tu, esforçado dom Sancho, serás
aquele a quem eles hão de seguir
té chegar ao rio de Guadalquebir,
que com sangue d´imigos escurecerás;
e por mais mereceres, depois tomarás
a cidade de Silves contraminando
e almas de corpos sempre tirando
de corpos de mouros c´ali matarás.
Alcácer do Sal será bom penhor,
ó mui poderoso dom Afonso Segundo,
de tuas obras cá neste mundo
e no outro coroa de conquistador,
e partindo par´ele mui vencedor
[163v/b] aos teus leixarão dom Sancho Capelo
por rei de virtudes e obras de zelo,
de zelo mui santo e clemente senhor.
Bolonha, Bolonha quanto hás de perder,
e tu Portugal, quanto hás de cobrar
no terceiro Afonso que se há de chamar
rei do Algarve por seu grão saber.
Aqueste, por mais se enobrecer,
dourados castelos em campo vermelho
poerá na orla das quinas e espelho
em que todalas armas se poderão ver.
Paderne, Alvor, Selir e Loulé
e Faro sentem já o destroço
do grande poder e bravo esforço
dele, que há de pugnar pola fé.
E o santo favor que foi sempre, e é,
em ajuda das obras de tal calidade
será nestas suas com prosperidade
que as erga, exalce e ponha em pé.
Ó, justo Dinis, tão noble e clemente,
lhe sucederá como filho primeiro,
em obras de príncipe mui verdadeiro
e em todalas cousas sabido, prudente,
e por mais estender seus povos e gente,
fundará vilas e nobres logares,
igrejas maiores, sagrados altares,
em que se louve por mui excelente.
[164r/a] O Quarto Afonso será comovido
com roguos daquele seu sangue amado
que leixe o seu reino por ser no Salado
em ajuda e socorro d´El-Rei, seu marido,
e daqui ficará assi tanto temido
antre enfiéis e danados pagãos,
quanto no conto dos nossos cristãos
pera sempre louvado e mui conhecido.
O rigor da justiça te há de leixar
a ti, dom Pedro, dom Pedro Primeiro,
nome de cru, por ser verdadeiro
verdugo daqueles que males obrar,
mas tu por´ela hás de ter e cobrar
a glória que dão a quem a mantém
e serás isento dos males que têm
aqueles que julgam por s´afeiçoar.
Bem vejo Fernando andar agastado
e mui descontente por um grande mal,
sendo o primeiro que em Portugal
[164r/b] há de sentir tão grave cuidado,
mas não leixará seu real estado
isento de fama e obra famosa,
pois cercará a mui populosa
Lisboa de novo, com muro dobrado.
Santa Maria d´agosto será
de ti, dom João, de boa memória,
memória honrosa de quanta vitória
neste tal dia o teu braço terá,
e onde se mais craramente verá
quanto em ti cobrou Portugal,
será naquela batalha real
que daqui a grã se ordenará.
E a loba marinha e grã tragadora,
ceita danosa aos navegantes
não tem poder nem forças posantes
que as tuas forças resista ũa hora.
Mas fazendo-se serva de grande senhora
já t´obedece, magnânimo rei,
rei que por lei e povo e grei
darás teu sangue sem algũa demora.
Ó Duarte primeiro, se podesses viver
mais de seis anos depois de ser rei,
que povos e terras que vejo e sei
que mui facilmente poderás vencer,
mas tu soubeste milhor escolher,
leixando esta vida tão trabalhosa,
e ir per aquela onda gloriosa,
madre de deus havemos de ver.
Tânger e Alcácer não hão d´escapar
do grande poder D´Afonso o Quinto,
ó Joane, seu filho, que obras que sinto
[164v/a] que hás de fazer quando se entrar
a vila d´Arzila pelo Albacar,
isto em tempo que a tua idade
o peso das armas com dificuldade
nas brandas carnes poderá sustentar.
Ó tempos, ó tempos, tempos de guerra,
de guerra com mouros e paz com cristãos
quem fosse então por beijar as mãos,
as mãos que terão por divisa espera,
ó divinas obras, nas quais se esmera
a fama famosa do grã Manuel,
quem se visse naquele tropel,
que vós cercareis as partes da terra.
Os maos e ingratos c´a Cristo mataram
per ele tão santo e poderoso rei
serão convertidos, tornados à lei,
à lei da graça que eles negaram
[164v/b] e assi cobrarão o que nunca cobraram
depois de perder o que tinham perdido
com suas maldades e endurecido
mao coração que nunca abrandaram.
[165r/a] Bem como rio que com invernada
dirriba e estraga o que acha diante,
e se é empedido, se faz mais possante
pera sair com fúria dobrada.
Assi a força deste será esmerada
em quem a ela quiser resistir,
e a quem na obedecer e servir
mansa, pacífica e mui aplacada.
Que falas, que dizes ou que ouviste
Çafim com todalas tuas cabildas,
pois tão temeroso já gora tomildas
as armas daquele que tu nunca viste?
Não temas, não temas, que não serás triste
quando te vires em poder de quem
a todos teus males tornará em bem,
em bem repousado que nunca sentiste.
E tu, a Duquesa, com teu Azamor,
também vos vejo com ferro lavradas,
e com sangue dos vossos também regados
que sesta-feira será bom penhor,
penhor do que digo e grande louvor
das armas daquelas isto que farão,
as quais de contino assi levarão
as terras d´imigos per este tenor.
[165r/b] Afutos, Asas, com os de Cumânia
e seu poderoso e grande Xarife,
vendo um seu pequeno esquife
se ajuntarão com os de Acania,
e vindo todos com grande alegria,
entraram carregados com cheo alforje
na cidade d´ouro, chamada São Jorge,
por se achada naquele tal dia.
Os crus andiotes da grã terra d´Anda
com os Acius, Lanus, Beramus,
sabendo a nova dirão ora sus
vamos servir aquele que manda.
Terras e mares e seu nome anda
por todalas partes tanto temido,
que dá poder ao menos valido
e ao mais poderoso dispõe e desmanda
[165v/a] E aquele grã Cabo de Boa Esperança,
que tanta de terra esconde ao mundo,
virá mui alegre com rostro jocundo
a lhe obedecer sem algũa tardança,
de terras e povos fazendo ũa dança,
vindo cantando com doce harmonia
estas palavras de grande alegria:
«Vivamos contentes com tanta bonança.
Com tanta bonança, pois temos razão
que Deus é conosco, segundo o pubrica
o seu nome santo que nos testifica
vivermos a vida sem mal e paixão,
e na outra cobrar e ter salvação
das almas c´agora temos danadas,
seguindo todalas suas pisadas,
pisadas de casta e limpa tenção».
E quem a todos trará a dianteira
e pera a tal festa estará mais a pique,
será o fiel e leal Moçambique,
vindo Çofala por sua bandeira,
a qual é louvada por ser tisoureira
do mais precioso e prezado metal,
e com vozes alegres dirá: «Portugal
me fez pera sempre sua prisoneira».
E nesta envolta virá mui contente
a Ilha do Santo em grelhas asado,
trazendo de frol um rico toucado
da frol qu´ela tem por mas excelente,
cercando em torno toda aquela gente
de ilhas pequenas suas comarcãs,
mostrando-se todas muito loçãs,
por serem sojeitas ao rei do ponente.
Quilua, Mombaça, Melinde, Patém,
[165v/b] Baraba, cidade e Abalandarim,
com a fraca gente do forte Apenim,
Zapenda, Guardafu e o cabo que tem,
trarão consiguo a grande Adém,
inda que venha sangoentada
e com sua dura cabeça quebrada
das forças do rei d´Aquém e d´Além.
[165v/b] E o reino d´Ormuz, Macrã e Nautaques,
Diulicinte, Rezbutos, Cambaia,
[166r/a] com os Guzarates, que é gente quem saia
mal sua vida em guerreiros embates,
e Miliquiaz, com seus baluartes,
com eles virá também nesta envolta,
e Chaul e Dabul a rédea solta
e Goa, tomada per muitos combates;
Batigala, Angediba e Onor,
com toda a grão terra do Malabar,
em tão alegre tempo não hão de negar
companhia ao forte Cananor,
o qual se nomea por grande senhor
em ser guardado e mui defendido,
com Naires fidalgos c´aceitam partido
de morrer e viver por pouco valor.
Também virá qui a forte cidade
Calecut e Cochim, e a ilha Ceilão,
onde se acha povo cristão,
que tem e mantém algũa verdade,
ainda que faz neicidade,
na romagem do cabo Camorim,
dando às vidas maguoda fim,
cuidando nisto obrar piadade.
E os quelins, chatins nomeados,
por ser estrangeiros e não mercadores,
ajuntar-se-ão com quantos primores
acharem naqueles que são guerreados
dos de Narsinga pouco esforçados,
por míngoa de armas e coração,
que em corpos e boa desposição
são bem asaz proporcionados.
[166r/b] E postos em ordem mui concertada
esperarão pola rica Malaca,
que vem carregada com ũa carraca
das terras e povos de qu´ela é amada,
ond´entra Sião com sua enseada,
e Patane, que tem por desenfadamento
ver guerra de galos e o vençimento
que cada um há na sua liçada.
Champa e a China, com a cidade
que perdera o povo dos persas,
passando per terras muito diversas,
logo virá com grão brevidade
em busca dos lequeos, que tratam verdade,
levando consiguo a búrnea gente,
e ajuntados todos, farão um presente
de fé e amor e grão lealdade.
O qual trarão por mui certo sinal,
c´ainda que fossem os derradeiros,
naquele tempo poseram os primeiros
pera servir e amar Portugal.
E Çamatra, que corta a equinocial
com todolos reinos e povos c´abarca,
ajuntar-se-á com a grande comarca
daquele arcepélogo oriental.
E neste alegre e novo prazer
e grão triunfo que todos farão
entre Joa, Angane e Binão,
[166v/a] armado das forças e forte poder
de Pantasilea, que quis perecer
na antiga batalha daqueles troianos,
que no cabo e fim de tempos e anos
per grego engano foram fenescer.
Pois Banda, com todolos reis de Timor,
Ambona, Maluco e as mais que não digo,
todos virão trazendo consigo,
ũas amor, otras temor,
porqu´estes dos meios são o tenor
per onde se rege a humana vida
e eles a fazem ter mui comedida
aos grandes reis e fraco pastor.
Agora, agora em feitos maiores
me dá tu senhor dobrada ajuda,
pois minha língoa se torva e muda
[166v/b] nas obras que vejo de tantos louvores;
não negues aqui o favor dos favores,
pois o nunca negaste a quem to pedio
e em sua fé levou e sentio
que tu és o señor dos grandes senhores.
A ti, Portugal, qu´estás descontente,
quero eu dar alegre esperança
com que dos males hajas vingança
dos males passados da tua gente,
a justa justiça do muito clemente
El-Rei dom João, deste nome terceiro,
fará com que vivas em mui verdadeiro
descanso eterno, e muito contente.
E quando se vir em força perfeita
de ponir o mal e a quem merecer,
dar galardão por não perecer
a sua verdade e via dereita,
então será voz da ovelha aceita
no meio dos altos e mui fortes prados
e os mansos cordeiros, fartos guardados,
do lobo danado c´a vida lhe espreita.
Pois tu, que não queres com sono acordar,
espera, espera um grande despejo,
ó, meu Deos e Senhor, quantas obras vejo
em que não vejo per onde entrar!
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