Ana Rita Gonçalves Soares1 – Universidad Complutense de Madrid
ResumenÂ
A partir da análise de um conjunto representativo de três narrativas contemporâneas – O remorso de baltazar serapião (2006) de Valter Hugo Mãe, Fascinação seguido de A Dama Pé-de-Cabra (2004) de Hélia Correia e O FÃsico Prodigioso (1966) de Jorge de Sena – este estudo pretende dar uma perspetiva panorâmica da ficção «histórica» portuguesa de tema medieval, em particular no que se refere à representação de alguns temas e personagens caracterÃsticos do género fantástico.
AbstractÂ
A partir del análisis de un conjunto representativo de tres narraciones contemporáneas –O remorso de baltazar serapião (2006) de Valter Hugo Mãe, Fascinação seguido de A Dama Pé-de-Cabra (2004) de Hélia Correia y O FÃsico Prodigioso (1966) de Jorge de Sena– este estudio pretende ofrecer una perspectiva panorámica de la ficción «histórica» portuguesa de temática medieval, en particular en lo que se refiere a la representación de algunos temas y personajes caracterÃsticos del género fantástico.
1.- Imaginários mágicos
Durante um breve instante, o inverosÃmil irrompe no verossÃmil. Cria-se uma Idade Média de fantasia, múltipla e heterogénea, presa num passado sem signos de identidade com caráter referencial explÃcito.2 Trata-se de uma época tão longÃnqua no tempo, que o/a leitor/a contemporâneo/a admite a presença de bruxas, maldições, metamorfoses animais e pactos com o diabo. Prescindindo das expressões introdutórias tÃpicas da literatura infantojuvenil –«Era uma vez…», «Há muito, muito tempo…», «Num paÃs distante…»–,as narrativas que são objeto deste estudo, tal como os contos de fadas, propõem um «mundo medieval possÃvel» cuja veracidade nunca será nem negada nem afirmada e cujas proposições são simultaneamente falsas e verdadeiras. É uma «Idade Média de fantasia (não mais de fantasia que essa época era capaz de ver em si própria) (Sena, 1966a: 259)».
O remorso de baltazar serapião (2006) de Valter Hugo Mãe, Fascinação seguido de A Dama Pé-de-Cabra (2004), de Hélia Correia, e O FÃsico Prodigioso (1966), de Jorge de Sena, criam universos ficcionais ontologicamente instáveis: começam por imitar a imagem construÃda pelas fontes medievais, para depois a desconstruir – em diferentes nÃveis – utilizando os mecanismos tÃpicos do género fantástico, ao qual aliam a ironia pós-moderna.3 Deste modo, a ficção «histórica» contemporânea expõe as dúvidas articuladas pela Pós-modernidade em relação aos enunciados historiográficos e à sua insuficiência/ parcialidade, tecendo crÃticas à s estruturas de poder patriarcais que permanecem até à atualidade. A Idade Média não é representada com a nostalgia romântica nem com o detalhismo realista, mas sim com a intenção de apresentar uma alternativa complementar, subversiva, a-histórica ou anacrónica das fontes originais.
2.- As bruxas de o remorso de baltazar serapião4
Para manter o/a leitor/a na «ilusão de estarmos ao tempo de uma idade média tardia» (Mãe, 2013: s/p), anunciada na contracapa de O remorso de baltazar serapião (2006), Valter Hugo Mãe inclui várias personagens e tópicos que contribuem para a configuração do universo medieval e que permitem alicerçar a experiência leitora na Idade Média.5 Valter Hugo Mãe evoca, por um lado, um dos principais tópicos das recriações medievalizantes – o próprio sistema feudal, integrado num universo temático criado com os elementos que constituem o «museu imaginário» atual sobre a Idade Média – e, por outro lado, a representação de tópicos atemporais que permitem dar visibilidade ficcional à questão da violência de género. A estas juntam-se outras estratégias como a materialização de uma visão eminentemente retrógrada, ignorante e rude, além da utilização de uma linguagem que (não o sendo) evoca «um português antigo» (Mãe 2013: s/p).
A estratégia de revisão ficcional de um perÃodo histórico percebido na atualidade como eminentemente misógino permite, portanto, retratar de forma credÃvel a vulnerabilidade social que carateriza as personagens femininas e a crueldade de que são objeto. Exposto com uma brutalidade desconcertante graças à voz narrativa de baltazar, Valter Hugo Mãe apresenta assim um cenário estranhamente incivilizado, onde a narração da violência de género está confinada a um conjunto de regras que, em última instância, provocam o descrédito e a reprovação da instância leitora. Nesse sentido, uma das estratégias utilizadas é a brutalização das personagens, construÃdos de modo a provocar no/a leitor/a um distanciamento irónico ou até uma acentuada animadversão. Para esse objetivo contribui ainda a representação grotesca, satÃrica, denegridora ou até cómica da sociedade medieval, explorando a capacidade de o/a leitor/a se aproximar e se distanciar dos personagens e do universo narrado. Gertrudes, por exemplo, representa a insubmissão à autoridade masculina e aos preceitos medievais, uma postura patente em ambos os seus epÃtetos: bruxa e mulher queimada. A primeira menção a gertrudes coincide com a narração da sua condenação à fogueira, evento no qual se reuniam os habitantes das terras de dom afonso. Este episódio introduz no romance o tema do impiedoso sistema judicial, ampliando as referências no romance a estereótipos medievais. Este enquadramento contribui também para a criação de empatia entre o/a leitor/a e a velha que se intui ser (mais) uma vÃtima de uma sociedade machista e retrograda:
Descontextualizando o tema da violência de género para um cenário medieval, o autor evoca, por um lado, um dos principais tópicos das recriações medievalizantes – o próprio sistema feudal, com as regras, a justiça, as hierarquias e os tiranos que o caraterizam – e, por outro, a representação da mulher que, neste contexto, «must be content […] to have patriarchy itself as her adventure» (Tolmie, 2006: 157). A caraterização da velha gertrudes apresentada pelo narrador salienta o seu carácter medonho, sendo descrita como «bicho, coisa mais feia que pesadelo» (Mãe, 2006: 85). O/A leitor/a atual, contudo, não adere à imagem apresentada pelo protagonista. Condenada a uma vida de fugitiva depois de escapar da fogueira, gertrudes vagueia por propriedades abandonadas até que baltazar e aldegundes serapião aceitam levá-la «para a largar em lonjura que lhe baste» (Mãe, 2006: 98). Assim, os dois irmãos serapião e a mulher queimada partem em direção à residência de dom dinis a convite do próprio rei. Pelo caminho, sucedem-se as bifurcações e os encontros casuais com desconhecidos, elementos tÃpicos da configuração do motivo da viagem:
Durante a viagem, a bruxa confessa ter sido condenada por ter assassinado os seus maridos. Perante a incredulidade de baltazar, gertrudes explica: «porque me deram todos dores de mau grado, coisa de me terem desrespeito e ódio, postos em mim como bichos a toda a hora [… recuso ser de homem, nada quero que homem algum me toque» (Mãe, 2006: 99). O arquétipo da bruxa, representado por gertrudes, materializa assim uma das principais estratégias narrativas utilizadas pelo autor: o paradoxo que se estabelece ao manipular a perceção antagónica do «insólito» para o narrador (medieval) e para a instância leitora (contemporânea). As opiniões de gertrudes são percebidas como erróneas, e consequentemente, são condenadas pelas personagens da narrativa. O/A leitor/a contemporâneo/a, pelo contrário, empatiza imediatamente com a velha e chega a legitimar o homicÃdio dos seus maridos como ato de autodefesa, depois de cenas repetidas de agressão e violação.
Por outro lado, o motivo da viagem descrita contribui para a caracterização de um espaço onde a magia e o insólito adquirem razoabilidade para o protagonista.6 Efetivamente, como contexto propenso a «surpresa e perigo» (Mãe, 2006: 110), é durante a viagem que baltazar e aldegundes são amaldiçoados pela bruxa gertrudes, ação que potencia o desenlace da história. Durante o caminho até ao castelo d’el-rei, baltazar e aldegundes escapam enquanto gertrudes dorme, incumprindo a promessa de a levarem até terras distantes. Quanto começam a sentir um calor intenso, os irmãos serapião acreditam terem sido amaldiçoados pela bruxa e condenados a morrer. Ao encontrarem um aldeão pelo caminho e confessarem-lhe o seu sofrimento, são conduzidos até à casa da bruxa orlandina que lhes solicita uma moeda de prata em troca do antÃdoto: água da chuva. Os irmãos devem assim manter permanentemente uma das mãos dentro de um cântaro de água, caso contrário morrerão:
Parece possÃvel inferir que a comicidade inerente ao fragmento anterior está relacionada com uma estratégia de «laughing at the Middle Ages» (D’Arcens, 2014: 10), materializada na representação de uma Idade Média risÃvel «either for its ludicrously self-serious authoritarianism, its benighted superstitiousness or its unself-conscious vulgarity». O cómico da situação resulta da aceitação inquestionada por parte de todos os personagens, incluindo o rei, da existência da maldição e da validade do antÃdoto, representações da ingénua credulidade e superstição medievais. Ao apresentarem-se como bruxas, tanto gertrudes como orlandina têm a oportunidade de subverter o sistema, aproveitando-se da ingenuidade e do medo dos personagens. Deste modo, ainda que o contexto medieval proporcione um universo onde (dentro do pacto ficcional) o fantástico é verosÃmil, as «maldições» de gertrudes e as «curas» de orlandina parecem resultar da astúcia de ambas mulheres que, graças a esta caraterização, obtêm o respeito (e, principalmente, o receio) dos demais personagens.
3.- As mulheres da periferia profana em Fascinação
Fascinação seguida de A Dama Pé-de-Cabra (2004) de Hélia Correira amplia o relato oitocentista «A Dama Pé de Cabra: Rimance de um Jogral (Século XI)» (1858), de Alexandre Herculano que, por sua vez, retoma a lenda fundacional da famÃlia biscainha dos Haros, descrita no medieval Livro de Linhagens do Conde D. Pedro de Barcelos.7
Na «Trova Primeira» de «A Dama Pé de Cabra: Rimance de um Jogral (Século XI)», o narrador começa por convidar os/as ouvintes a que se sentem junto a ele, à lareira. Corroborando a veracidade do narrado, esclarece imediatamente que «se a conto é porque a li n’um livro muito velho, quasi tão velho como o nosso Portugal. E o auctor do livro velho leu-a algures, ou ouviu-a contar, que é o mesmo, a algum jogral em seus cantares» (Herculano, 1858: 5). Pede silêncio, e começa a contar a história de D. Diego Lopez e da sua misteriosa amada.
Durante uma caçada, o jovem Diego Lopez apaixona-se por uma bela dama que canta no topo de um rochedo. Sabendo que ela provém de uma alta linhagem, prontamente lhe propõe matrimónio. A dama aceita com uma insólita condição: que ele nunca se persigne. Apesar de perplexo com a imposição, o nobre acede, e leva-a para o seu castelo. Só à noite se apercebe que a dama tem os pés forcados, como uma cabra. Essa descoberta, contudo, não afeta a harmonia em que ambos vivem durante os anos que se seguem. Como conta Alexandre Herculano (1858: 11), «por annos a dama e o cavalleiro viveram em boa paz e união. Dous argumentos vivos havia d’isso: D. Inigo Guerra e Dona Sol».8 Certo dia, comiam todos juntos um javali recém-caçado, rodeados dos seus fiéis animais de estimação: um manso alão, pertencente a D. Diego, e uma pequena podenga negra, da Dama. D. Diego decide atirar um osso na direção do seu pachorrento alão, mas a podenga não hesita e lança-se à garganta do animal, deixando o cão a agonizar no chão.9 Apavorado com a reação da cadela, o nobre benzese, incumprindo a promessa feita à sua esposa. Nesse instante, a Dama sofre uma surpreendente transfiguração – «olhos brilhantes, as faces negras, a bôca torcida e os cabelos eriçados» (Herculano, 1858: 13) – e, num impulso, agarra as duas crianças e foge a voar pela janela. D. Diego move-se rapidamente e consegue agarrar o filho, enquanto a esposa e Dona Sol se afastam do castelo, desaparecendo em direção às montanhas.
Hélia Correia retoma a narrativa de Alexandre Herculano neste ponto, indagando sobre o destino da pequena Dona Sol. Aparentemente, não teria herdado a terrÃvel condição materna, ainda que a paixão incestuosa pelo seu irmão Inigo – «Enheguez», segundo o Livro de Linhagens – demonstre que esconde uma faceta «um tanto diabólica também» (Correia, 2004: 17). Este é o tema central de Fascinação: o amor incestuoso de Dona Sol pelo seu irmão Inigo, um tópico que já tinha sido insinuado na versão herculiana.10
«De Inigo Guerra muita história é conhecida […] episódios de aberta fantasia, como tê-lo ajudado sua mãe a libertar o pai das prisões mouras, circulavam, sem emenda, a seu respeito. O que até hoje permanece omisso, ainda que o soubesse eu, não vos diria» (Correia, 2004: 15–16), comenta ironicamente a sarcástica narradora de Fascinação. Deste modo, a novela manifesta-se conhecedora dos relatos que a precedem, questionando-os com o objetivo d desmistificar a importância concedida, até aqui, a certos elementos. A edição de 2004 inclui, aliás, A Dama Pé de Cabra: Rimance de um Jogral (Século XI) de Alexandre Herculano, convidando a uma leitura comparada que expõe o caráter parcelar e lacunar do texto oitocentista. Neste contexto, destaca-se a perspetiva eminentemente masculina do relato, que concede protagonismo a Inigo e Diego, relegando para segundo plano a Dama e a sua filha.
No conto romântico, a Dama é convertida em bruxa e entidade demonÃaca, invertendo o nobre papel de fundadora da linhagem dos Haros relatado no manuscrito medieval.11 Na versão contemporânea, tanto a Dama como a sua filha são entidades hÃbridas, queer, nem plenamente humanas nem plenamente divinas.12 Tal como o fÃsico de Jorge de Sena, que se analisará em seguida, as personagens femininas de Hélia Correia apresentam-se como vÃtimas de algum pacto diabólico que lhes outorga poder na mesma medida em que as condena e, em ambos os casos, essa condição profana assume-se como plural e fértil. Inevitavelmente, no entanto, gera tensões irresolúveis. Em Fascinação, essa tensão expressa-se no amor incestuoso que a protagonista sente por Inigo. A concretização deste amor, adversa «à s convenções da cristandade» (Correia, 2004: 17), é impedida constantemente por uma força divina que interpõe barreiras sobrenaturais entre os dois irmãos, iniciando o que Paulo Pereira (2008: 53) denomina «um despique titânico entre Deus e a Dama».
Note-se que, sobretudo a partir da Idade Média, a imagem feminina da Virgem Maria contrabalança o Ãcone masculino, autoritário, de um Deus-Pai-Todo-Poderoso. Não existe, contudo, equilÃbrio de poderes entre os dois polos, já que a Virgem é caracterizada pelo patriarcado como uma figura submissa e passiva; poderosa apenas no seu papel de progenitora, de intermediária. A Dama é aqui relegada, em certa medida, para o mesmo espaço: poderosa mas, ainda assim, mulher. O desenlace deste «despique titânico» aponta necessariamente para uma crÃtica à moral católica e ao controlo que (ainda hoje) pretende exercer sobre as mulheres e a sexualidade feminina.13
No cenário, parece pairar constantemente uma névoa. A utilização do folclore e da literatura tradicional com elementos mágicos é usada portanto por Hélia Correia para expor os mecanismos de controlo existentes na sociedade patriarcal, por um lado, e a importância de repensar que espaço ocupam as mulheres dentro desse sistema, por outro. Expressa-se também a tensão insolúvel entre a necessidade de reprimir a sexualidade feminina e a impossibilidade de a suprimir totalmente. Dessa tensão resulta a condenação da protagonista. No final, também Dona Sol partilha o destino da mãe, sentenciada a viver na periferia profana:
– E que esperais para me mudar mãezinha? […]
Uma mulher cantava nas muralhas. Diziam que ela olhava para os pés como como se já tivesse endoidecido (Correia, 2004: 21–22).
4.- O Diabo e outras divindades plurais em O FÃsico Prodigioso
O FÃsico Prodigioso é uma novela escrita por Jorge de Sena em 1964 e incluÃda, dois anos depois, na coletânea de contos Novas Andanças do Demónio.14 Dividida em doze capÃtulos, a história do jovem fÃsico «é desenvolvimento muito ampliado e, se quiserem, muito deturpado de dois «exemplos» do Orto do Esposo, o belo livro moralÃstico-religioso da literatura portuguesa da primeira metade do século XV» (Sena, 1966: 121): o exemplo do capÃtulo I do livro III – que serve de inspiração à primeira parte da história – narra como um homem com poderes mágicos cura a senhora de um castelo com o seu sangue e ressuscita os seus cavaleiros; o exemplo do capÃtulo XI do livro IV – que se reconhece claramente na segunda parte da obra de Jorge de Sena – relata a salvação de um homem que não pôde ser enforcado graças a um pacto com o Diabo.
Além da confessada intertextualidade medieval, intui-se claramente a representação de uma época distante graças, por exemplo, à inclusão de cantigas de amigo – inventadas pelo autor –, para além de alusões a um imaginário mágico relacionado com práticas, crenças e superstições religiosas populares da Idade Média. No entanto, apesar de incluir elementos que localizam a experiência leitora no mundo medieval, não se trata de uma recriação histórica com pretensão realista. Numa «Pequena nota introdutória a uma reedição isolada», datada de 1977, Jorge de Sena (1977: 12) esclarece que «esta ‘época’, dando-me uma distância ‘pseudo-histórica’, permitia-me uma liberdade da imaginação em que o fantástico, com todas as implicações eróticas e revolucionárias como eu sentia ferver em mim na pessoa do ‘fÃsico’, podia ser usado para tudo». A liberdade que a «distância pseudo-histórica» possibilita ao autor evidencia a rutura com as convenções oitocentistas tradicionais que regulavam a representação do passado. No que se refere à s «implicações eróticas e revolucionárias», os mecanismos do género fantástico permitem a Jorge de Sena expressar livremente a vivência do impulso sexual, o homoerotismo e a «voracidade libidinal» (Pereira, 1999: 6). Pode-se somar a esta lista ainda o incesto, tema central de Fascinação de Hélia Correia, ou o sadismo, a violação e a violência machista extrema, que se encontram em o remorso de baltazar serapião de Valter Hugo Mãe. Graças à distância cronológica, os/as autores/as contemporâneos/as podem assim expressar hiperbolicamente a experiência da sexualidade e dos corpos, projetando temas atuais através do «uso auto-expressivo» do universo medieval; uma estratégia semelhante à utilizada por escritores/as da época vitoriana que consiste na utilização de um entorno medieval como «protective veil, behind which writers could explore psychological, sexual and subjective matters that might otherwise have seemed outrageous» (Arnell 1999: 26). Como acrescenta Paulo Pereira (1999: 2), este processo de destemporalização «parece igualmente corresponder à necessidade de recuperar, expondo com despudor o necessário gesto narrativo anacrónico, uma época definida pela subversão carnavalesca ou, nas palavras de Bakhtine, pelo apogeu do realismo grotesco». No que se refere concretamente ao conto de Jorge de Sena, convém ainda sublinhar que a alegoria medievalizante camufla uma crÃtica aos mecanismos repressivos do regime do Estado Novo. Apesar do conteúdo escandaloso e provocante, a estratégia de deslocação temporal – assim como a sua publicação como parte de uma coletânea (Bernardino, 2014: 29)–, permitem evadir a «censura rigidamente moralÃstica» (Sena, 1977: 8) que vigora em Portugal à data da primeira publicação.15
Nesta diablerie, Jorge de Sena recorre à fórmula tÃpica do romance de cavalaria medieval – um cavaleiro, uma donzela, um impedimento amoroso, a luta e o seu desenlace –, mas atribui aos protagonistas caracterÃsticas queer, invertendo em larga medida os papéis tradicionais: é a beleza masculina do fÃsico a geradora do conflito inicial. A primeira parte da história inicia-se com a apresentação do protagonista, através do qual Jorge de Sena explora as dificuldades de uma existência hÃbrida, oscilante entre uma divindade indesejada e uma humanidade incompleta, promovendo uma reflexão sobre os limites de ambas as condições. O belo fÃsico é um cavaleiro jovem de longos cabelos loiros, dotado de poderes mágicos (entre os quais a invisibilidade) graças a um gorro. AtraÃdo pelo seu corpo, o Diabo persegue-o «desde que primeiro se soubera homem», cortejando-o sempre que este se despe e insinuando o seu desejo de o possuir, ao qual o fÃsico se entrega «num abandono indiferente»:16
Exausto depois do encontro com o Diabo, o fÃsico toma banho no rio e adormece na margem. O texto bifurcar-se, então, em duas colunas em paralelo, que narram duas versões da cena que se segue, ambas evidenciando a relação mÃstica e erótica que um grupo de três damas estabelece com o protagonista. À esquerda, as três donzelas apresentam-se de acordo com os estereótipos medievais das virtudes cristãs. Revelam-se fascinadas com a beleza do jovem, mas mantêm o pudor que a sua condição de castidade impõe. A coluna da direita, no entanto, apresenta uma alternativa de contornos pagãos da mesma cena, começando por descrever as três donzelas como deusas voluptuosas que admiram a beleza do fÃsico sem indÃcios de vergonha.
O fÃsico acorda e, finalmente, as três donzelas enunciam os seus propósitos: procuram um homem que seja filho de rei, nobre, formoso, virgem e grande fÃsico, que possa curar a Dona Urraca do estado de estupor em que se encontra. Segundo lhe explicam, aquele que fosse capaz de a satisfazer sexualmente poderia curá-la dos seus males e reavivar os seus poderes encantatórios. O fÃsico, apesar de não ser filho de rei, aceita acompanhar as damas até ao castelo. Para a curar, começa por verter o seu sangue virgem para uma tina onde Dona Urraca se mergulha.17Só depois podem entregar-se plenamente um ao outro e quebrar o encantamento. O encontro amoroso, contudo, estabelece-se entre os três amantes – Urraca, o fÃsico e o Diabo – numa cena onde a ambiguidade sexual não é vivida como perdição, mas sim como geradora de prazer e gozo para os seus intervenientes. Na novela, não há êxtase ante o divino, mas perante o desejo erótico, carnal.
Cumprido o seu desÃgnio, o fÃsico começa a desconfiar que «aquelas mulheres eram bruxas. Ele tinha dormido com uma bruxa. Eram tudo bruxas de um castelo infernal» (Sena, 1966b: 95). Este receio do fÃsico – e, por extensão, neste caso, do patriarcado – é resultado da constatação de que as donzelas vivem com Urraca no castelo, sem rasto da presença de homens, desfrutando de uma espécie de «ginossocialidade». O fÃsico descobre que, depois de saciarem o seu desejo sexual, as damas matam todos os homens que chegam ao castelo, de cujos restos mortais jazem numa grande vala.18 Decidido a
abandoná-las, as donzelas-deusas-bruxas tentam impedi-lo despedaçando e comendo o seu cavalo – entendido como duplo do cavaleiro – numa cena onde volta a emergir a relação entre o êxtase mÃstico-erótico e os rituais pagãos. Com claras implicações freudianas, depois de morto o cavalo, Urraca lambe deleitada o que será seguramente o pénis do animal (Sena, 1966b: 52). O falo, sÃmbolo lacaniano do poder masculino, é devorado.19 Invertem-se novamente as dinâmicas tradicionais de poder dos romances medievais, outorgando à s damas um apetite sexual associado ao canibalismo – aqui, literalmente figuradas como man-eaters (Atkin, 2015: 23) – um estado que contrasta com o de «bela adormecida» no qual se encontrava a senhora do castelo antes da chegada do protagonista. Neste e noutros episódios do romance, Jorge de Sena propõe uma rutura com a representação das mulheres como seres sexuais passivos, reconfigurando as convenções literárias tradicionais. As implicações desta cena, contudo, não se circunscrevem à subversão dos papéis arquetÃpicos femininos. Retomando algumas considerações iniciais, também o fÃsico corresponde a um entendimento sumamente amplo do conceito de herói medieval. O personagem constrói-se com uma divindade incompleta, uma masculinidade queer, um caráter inseguro e uma visão frequentemente preconceituosa da realidade. Não é, nem pretende ser, um tipo.
A segunda parte da novela centra-se no julgamento absurdo do fÃsico promovido pela Inquisição, acusado de «assassinatos, vampirismo, sodomia, toda a escala de pecados contra-natura, e uma rede imensa de propaganda subversiva, em que se incluÃam crimes como curar doenças, ressuscitar defuntos, e retrogradar no tempo decorrido» (Sena, 1966b: 115).20 Sucedemse interrogatórios, contrainterrogatórios, apuramento dos factos, alegações descabidas e tortura, com a clara intenção de condenar o jovem fÃsico e a Dona Urraca. O tom satÃrico com que Jorge de Sena descreve o processo inquisitorial e as práticas eclesiásticas evidencia a denúncia do abuso de poder daqueles que reivindicam o estatuto de porta-vozes da palavra e vontade de Deus:
Quando finalmente decidem condenar o fÃsico, constatam que ele não sucumbe, apesar de vários anos de tortura. A sua beleza e juventude resistem. Frei Antão decide convocar Satanás para apurar o motivo desta resistência sobrenatural à morte.21 O Diabo, assumindo a forma de Frei Antão, prontamente esclarece: «Porque o amo perdidamente, desde que primeiro o vi. E não consinto que ele seja destruÃdo. Longamente, durante estes anos, eu vos quis provar que não consentiria» (Sena, 1966b: 127). Evocando o texto do exemplo medieval, o Diabo manifesta-se, assim, como adjuvante do protagonista, corroborando talvez a leitura que faz Rhian Atkin (2015: 26): «Urraca may in fact be the devil in another guise». Independentemente da aparência adotada, o diabo, o fÃsico e a bruxa simbolizam uma resistência estranha e plural, que se reproduz frente à s formas de poder patriarcais. Aqui, tal como em Fascinação, o divino multiplica-se e assume formas inesperadas.
A estrutura da novela expõe, assim, sete sequências de quatro elementos, metáfora do Eterno Retorno, com as suas fases de ascensão, decadência e reinÃcio do ciclo: Infertilidade/Morte – SacrifÃcio – União – Fertilidade/ Vida (Laranjinha, 1993: 235). No último capÃtulo, Jorge de Sena descreve a violação de uma jovem e o seu encontro com um rapaz invisÃvel.22 Reinicia-se o ciclo.
No final, os amantes morrem. A magia, contudo, não. Permanece.
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