NÚMERO 14

DO

QUAI LOUIS XVIII

BORDÉUS - FRANÇA

POR ANTÓNIO DE MONCADA DE SOUSA MENDES

 

 

ARÍSTIDES, O CÔNSUL QUE DESOBEDECEU

 

Ed. de Josep Ramón Garcia Ibáñez (julio del 2000)


Resumo da peça:

Ainda há bem pouco tempo, Arístides de Sousa Mendes era um caso (mais um caso) tabú neste país. Só a pressão vinda do estrangeiro fez com que os cidadãos portugueses fossem tomando algum conhecimento da sua existência. Esta peça procura mostrar essas manobras políticas assim como nos dar uma idéia do que foram os três dias de junho de 1940 em Bordéus (França) em que Arístides de Sousa Mendes foi confrontado com uma das situações mais trágicas e dramáticas da história da humanidade. Para milhares de refugiados da guerra e da tirania nazi a única hipótese de salvação passava por Portugal mas, para chegar a Portugal era preciso obter um papelinho que valia ouro e que se chamava VISTO !. Salazar "todo-poderoso" para agradar a Hitler proíbe determinantemente, através da Circular 14 a atribuição de vistos a judeus. A quem obedecer ? O que fazer ? É este o mesmo conflito que Arísitides vai viver e que se pretende reviver nesta peça. Obedecer ao capricho de um homem ou obedecer às leis do Amor, do Coração... às leis do Criador ?

 

Algumas notas sobre a encenação:

 

A peça está dividida em várias cenas e tem bastantes personagens, podendo ter muitos figurantes. A ordem das cenas pode ser a porposta ou pode ser alterada, podendo as mesmas ser ainda mais subdivididas. Será melhor que várias pessoas leiam a peça e troquem idéias antes de começarem o trabalho de encenação. Um grupo de 6 a 8 actores pode ser suficiente para montar a peça, devendo cada actor desempenhar um ou mais papéis. Claro que esta peça pode fazer participar muitos actores e muitos figurantes que poderão ser os refugiados ou guardas-fronteira, ou polícias da "Gendarmerie" francesa. Aconselho cenários simples. Malas, sacos, bengalas, colchões, chapéus, etc. poderão ser bons adereços.

Os elementos do público também poderão participar desde o momento em que compram o bilhete ou entram na sala do espectáculo. Serão os refugiados ou prisioneiros num campo de concetração e poderão mesmo ter que obedecer as ordens : "Homens para um lado, mulheres para o outro !"... por exemplo. Poder-se-ão atribuir passaportes a esses "refugiados" e mesmo colocar no peito estrelas de David (seis pontas).

De cualquer modo o autor da peça permanece à disposição de todos os que desejarem contactar para disentir idéias : António Moncada Sousa Mendes : (01) 8536557. Lisboa.

 


 

Versão alargada

 

 

Cena 0

Antes do "espectáculo" começar um homem, aparentando 60 anos, levanta-se na sala, na primeira fila, volta-se para o público e fala acusando um ligeiro sotaque :

-Peço desculpas mas, a minha emoção neste momento é tão grande que não resisto a falar-vos. São apenas algumas palavras ... sei que o espectáculo vai começar ! Eu sei, eu sei.

É para vos dar um testemunho : vim a Portugal nesta ocasião, totalmente por acaso e, quando soube da apresentação duma peça sobre refugiados da 2ª Gruerra Mundial ... quis logo vir vê-la, porque ... eu fui um desses refugiados de 1940 ...

Si bem que nessa altura tivesse apenas 7 anos, nasci em Antuérpia em 1933, no ano fatídico em que Hitler subiu ao poder... ainda tenho umas vagas recordações desses momentos ... lembro-me que algumas semanas depois da Bélgica ter sucumbido às mãos dos nazis, o meu pai, que era diamanteiro em Antuérpia, recebeu uma convocatória para se apresentar com a minha mãe e comigo às autoridades de ocupação.

Na véspera do dia em que nos devíamos apresentar, os meus pais ... levaram-me a dar um passeio, depois, ... meteram-me num comboio com bilhete que eles conseguiram arranjar nem sei onde ... para Lisboa ! Também me deram um passaporte ou um documento de viagem ... mais tarde, vim a saber que era un documento falso...

Já na estação antes de eu entrar para o comboio o meu pai disse-me mais ou menos isto : "Vais para lisboa, Portugal". E deu-me este papel com o nome de um senhor, e continuou : "Este senhor é meu amigo e vai pôr-te num barco para a América. Lá irás para casa do meu primo."

O nome e a morada do primo também se encontram aqui ... Depois fui guardando este papel que para mim era um verdadeiro testamento !...

Depois como "herança" deu-me um saco com pedras. Diamantes ... para o que desse e viesse ! Esta cena está muito viva na minha memória ; nunca poderei esquecer ... a minha mãe ... tinha os olhos cheios de lágrimas, mas controlava-se para não dar demasiado nas vistas ... mal me beijou ...

De Portugal lembro-me pouquíssimo ; apenas do barco. Todos tínhamos imenso medo que aparecesse algum submarino ... mas curiosamente o meu primeiro contacto com portugueses foi em França... em Bordéus mais exactamente. Não me lembro sequer como fui para a casa de uma família portuguesa ... nem me lembro do nome deles. Só um que se chamava ... Pe-drô. Devo acrescentar que a minha curta estadia nessa família foi providencial : andava cá com uma fome e lá comi muito bem ! Lembro-me sobretudo de uns bolinhos ...

Bom, depois na América, lá encontrei o tal primo e lá fiquei. Uns anos depois, tinha eu os meus 15 anos, soube que o meu pai tinha ido a parar a... a... a ... Ausehwitz e a minha mãe ... a Dachau !

Anos mais tarde fui visitar esses sítios à procura de algum vestígio deles ... de algum sinal, qualquer coisa ... queria sentir se restava alguma coisa deles no ar ou em qualquer lado. Queria imaginar um pouco como teria sido a vida deles lá ...

Quanto a Portugal, ficou-me sempre uma vontade de cá voltar, para vir agradecer a este país não ter entrado na guerra e ter-me ajudado, a mim e a tantos milhares de pessoas. Como veêm até aprendi a falar a vossa língua.

Não sei qual, ou quais terão sido os portugueses que me ajudaram directamente ; por isso não lhes posso agradecer também directamente. Mas a todos os portugueses aqui presentes hoje, eu desejo agradecer do fundo do coração, terem-me ajudado a escapar, terem me ajudado a viver !

Muitíssimo obrigado, amigos portugueses !

Agora vejamos a peça.

 


cena 1

Voz off : 1954

 

: Olha, aquele velhote que estava na minha enfermaria e que dizia que era diplomata morreu durante a noite. Coitado, ja não dizia coisa com coisa...

B : Ah, já sabia, mas, ... afinal, era mesmo diplomata, vê-la tu !

A : Ai, não me digas e eu que não acreditei e que fui tão mázinha. Como é que soubeste ?

B : Já aí vieram uns sujeitos importantes para o identificarem ... e diz que sim ... que sim, o velho era ou tinha sido, mesmo importante ... era, deixa lá ver se me lembro, ah, "Cônsul-General", vê-la tu, mas depois que se meteu na política ...

A : Ah, não me digas, ... mas assim tão mal vestidinho ... e tão só. Isto faz-me lembrar um caso de um senhor lá da terra, também diziam que era comunista, mas esse nem parecia, sempre tão amável, um dia apareceu morto, nunca se soube bem porquè...

B : Valha-me Deus, é melhor não falarmos mais nesas coisas. Mas o velhote, quer dizer, o, o, o senhor, por acaso tinha una cara bondosa... mas a política, depois é o que o faz. Ainda bem que temos Salazar connosco, livrou-nos da guerra, não te esqueças !

A : Agora me lembro, ontem à noite o vel ... hu... o senhor estava-me a dizer que tinha muitos filhos, mas que estava tudo na América e sei lá onde. Se calhar também é verdade ! ?

: Ah, e a mulher dele veio cá esta manhã, havias de a ver ! Mandou toda a gente embora lá da enfermaria, fez uma algazarra enorme, toda chique e francesa até parecia aquela, como se chama ? A Piaf !

 


 

 

CENA 2

 

A : Já sabes quem morreu ? O Aristides ... coitado, lá se foi...

B : ...o Aristides ... Quando ... quando foi ?

A : Na semana pasada, no Hospital da Ordem Terceira, em Lisboa. Estava sózinho e ... na miséria. O enterro foi como ele quereria, penso ; está no jazigo de Cabanas de Viriato.

B : Quem é que terá pago o funeral ? Não será a francesa ?

A : Não, parece que apesar de tudo foi o Salazar.

B : O Salazar ? Então o Salazar que o deixou morrer aquela desgraça ?

A : Quer dizer, O Ministério ... mas no fundo esta situação não agradava a Salazar, sabes ? Se o Aristides tivesse ...

B : (interrompendo) Não digas isso. O Salazar foi extrememente duro com o Aristides. Em 1945, depois da guerra, devia tê-lo reintegrado...

A : Não te esqueças que o Aristides desobedeceu. Desobedeceu a Salazar em tempo de guerra ! !

C : (entrando na sala com certo alvoroço) Ouvi dizer que o Aristides morreu, olhem que pena ! Morreu sózinho desamparado por todos ... com os filhos todos tão longe.

: É verdade, ele que conheceu as honras deste mundo ; que falou com chefes de Estado e que tinha tantos amigos.

C : E tanto espítito santo ! Nunca esquecerei aquele sentido de humor ...

B : Pois, pois, ... Até que um dia ... enganou-se, coitado ... depois os amigos fingiam não o ver ...

C : Até alguns familiares como nós ! ...

B : Paz à sua alma !

A : Bem, sem dúvida que ele era bom rapaz, tinha cualidades, mas era muito impulsivo, não ouvia a voz da razão e foi por isso que fez o que fez em Bordéus.

C : Eu cá, penso que o Aristides foi ... foi ... extraordinário ! de uma generosidade sem par.

A : Não tinha o sentido do dever, esse é que foi o grande erro dele ! Se ele tivesse seguido as ordens de Salazar nada disto tinha acontecido...

B : Eu tambem penso que o Salazar foi severo, sabes.

A : Mas o Salazar tinha que ser severo ! Não se esqueçam que o Salazar nos livrou da guerra e da fome. Todos nós gostávamos do Aristides mas, isso não nos pode impedir de ver a verdade : ele não cumpriu o seu dever !

C : Ah não ? Olha, se calhar cumpriu mesmo ... então qual será o primeiro dever de um homem, de um cristão ? Obedecer cegamente a um homem que pretende agradar a outro e que para tal dá ordens iníquas ? Ou ... obedecer às leis imutáveis de Deus ? Ou simplesmente às leis Humanitàrias ?

 


 

 

CENA 3

 

Nos corredores do MNE.

 

A : Olha ... o meu amigo.

B : Ah meu caro amigo, esses ossos. Dê cá um abraço.

A : Já há uns tempos largos que não nos víamos ! Então por cá agora ?

B : É verdade, e vou ficar ... Sabe, os anos já começam a contar.

A : Mas está com um aspecto grandioso, ninguém diria a idade que tem ... eu é que já o conheço há muitos anos ! Meu caro amigo ! há quantos, hein ? há uns bons 50, não ?

B : Não fale tão alto ... é que aqui as paredes têm ouvidos, ah, ah, ah !

A : Ah, ah, ah !

B : Diga antes meio século, é que assim parece ... parece mais "História", ah, ah, ah !

A : Então diz meu amigo que agora vai ficar ? ... Significa que deixou a Embaixada em Paris ?

B : Sim, agora vou pensar na minha vida. Ah, ah, ah, vou escrever as minhas memórias, ... aposentar-me !

A : Ah, mas que interessante, escreva as suas memórias, meu amigo ..., escreva-as ...

B : Ah, estou a ver que o meu amigo quer saber coisas, ... ah ... mas diga-me então onde está agora ?

A : Estou no país irmão. Mas que grande país que nós fundámos : colosal ! É preciso ser-se uma Grande Nação para conseguir tal cousa !

B : Olhe, os meus parabéns ! Esse posto nunca o consegui. Pedi-o várias vezes mas Salazar ...

A : Olhe, já sabe a última ? Lembra-se do Aristides ?

B : Quem ? O Aristides ? O Aristides ? Deixe ver ... neste momento ...

A : Aquele, o irmão do César, que foi Ministro dos Estrangeiros...

B : Ah, desse lembro-me, como não ... ía-me prejudicando como sabe.

A : Pois sei, mas ... já pouco resta desse "grupinho" ...

B : Credo ... que Nossa Senhora de Fátima nos proteja ... mas disse, Aristides, espere ... o César até cá meteu o filho ! Lembro-me !

A : E houve mesmo um filho do Aristides que quis entrar, mas nunca mais, nunca mais ... garanto-lhe, estava no júri, havia lá pessoas que o acharam interessante, mas eu defendi o Ministério.

B : Ah, bem feito ! Mas o Aristides já me lembro, aquele que desobedeceu ...

A : Sim, esse mesmo ! Foi o enterro a semana passada ...

B : Ah, olhe, deixe-o estar onde ele está agora que está bem, ah, ah, ah. É para esquecer !

 


 

cena 4

 

Voz Off : Washington, 1986

O Ministro do Comércio Externo português encontra o seu homólogo americano.

 

Americano : Viva, muito gosto em vê-lo.

Português : Ora viva, muito prazer.

A : Sente-se, por favor. Antes de mais nada, os meus parabéns por ter sido nomeado para responsável dos assuntos comerciais portugueses.

P : Muito obrigado. É realmente muito amável. De facto, esta promoção foi bem merecida, modéstia à parte. Ah, ah, ah. Isto é o fruto de muito trabalho, como imagina ! Bom, mas passemos a coisas mais sérias.

A : Exactamente, ia propôr-lhe isso. Passemos para asuntos sérios.

P : Ah, pois o meu Governo incumbiu-me da missão de lhes apresentar aqui uns projectos de acordos comerciais que viriam alargar o âmbito das nossas relações comerciais e diplomáticas visto que, como nós fazemos parte integrante da Comunidade Económica Europeia ...

A : (interrompendo o português) Já lá vamos, já lá vamos. O meu governo, assim como o Senado e o Congresso dos Estados Unidos pediram-me que se abordasse consigo um caso que verdadeiramente gostávamos de ver esclarecido e ... resolvido. Trata-se de um caso que para nós é prioritário, depois veremos esses projectos comerciais.

P : Diga, diga.

A : Já há mais de doze anos que o vosso país é um Estado democrático, respeitador dos direitos humanos, no entanto, há um caso que inexplicavelmente continua por resolver ! Estou a falar de um vosso herói da 2ª Guerra Mundial, talvez o único...

P : Desculpe, aqui deve haver equívoco, nós, graças a ..., ficámos neutros durante a 2ª Guerra Mundial, e herói, francamente não estou a ver...

A : Aristides de Sousa Mendes !

P : Aristides...

A : É que, para nós americanos, essas coisas têm muita importância. Temos uma grande devoção pelos nossos heróis e pelos direitos humanos, por sonseguinte, gostamos de ver o mesmo nos nossos parceiros comerciais e aliados.

P : Ah nós também, Aristides quê ?
Aristides de Sousa Mendes, claro !

P : Ah, claro, claro, sim, pois, pois ... mas e o que é que pretendiam ?

A : Queremos que, naturalmente, Aristides de Sousa Mendes seja reintegrado, promovido e condignamente homenageado. Uma condecoração de uma ordem importante seria muito bem vista pelos nossos congressistas e pela opinião pública em geral.

P : Se me dá licença, vou já telefonar para Lisboa para pedir instruções, aliás, para saber como, hu ... onte estão as coisas. (Português dirige-se para o telefone, o americano sai da sala)

P : Está ? está ? É de Lisboa ? Sim, sou eu, exactamente, estou a telefonar de Washington ... de Whasington, compreende ? Exactamente, exactamente ... so eu mesmo, hã ? Problema ? ... Não, não ... não olhe, sabe quem foi o Aristides de Sousa Mendes ? Hein ? Nunca ouviu falar ? ... Também não sabe ? Hein ? não faz ideia ? O quê ? Ah, não faz a mínima ideia ? Disse, mínima ? Veja lá se alguém aí sabe, por favor ... O quê, ninguém sabe ? Essa é boa, ninguém sabe nada ! Caramba ! Não, não é isso, é que aqui os americanos dizem que só fazem ... hu ... só assinam connosco depois de esclarecermos o caso ... sim, e de atribuirmos uma medalha ao homem, mas eu não lhes quero dar a saber que não conheço o caso, como é óbvio. O quê ? Telefonar mais tarde ? Tá bem, mas vejam lá se descobren quem é este Aristides...

 

Bastante mais tarde.

 

P : Está ? Então, já, também ? Sim, sim, sim, o quê ? ... Salvou milhares de pessoas durante a Segunda Guerra ? O quê ? Mais de trinta mil pessoas ? Contra as ordens de quem ? De Salazar ? O quê ? Desobedeceu Salazar ? Ah, desobedeceu, desobedeceu, pois compreendo, compreendo. Só não percebo porque é que os americanos têm tanto interesse em homenageá-lo ? Não percebo, francamente.
Ah, pensa que é por isso ? É bem possível.
O quê ? Salazar queria evitar que uma massa ignóbil e desprestigiante entrasse em Portugal ? Ah, sim, compreendo perfeitamente. Hein ? Além disso muitos deles eram judeus ? ah, pois, pois, ... pois e que isso colocaria mal Portugal aos olhos de Hitler ? De Hitler disse ? Ah, claro, claro.
Ah mas mesmo assim aceitam atribuir-lhe uma medalha aqui nos Estados Unidos ? Ah, para não desmoralizar os funcionários cumpridores e obedientes aí em Portugal. Compreendo, compreendo. Mas então afinal os refugiados que encontraram asilo durante a Segunda Guerra Mundial foi contra as ordens de Salazar ? Hein ? ... Ah.

 

Português dirige-se ao americano finalmente.

 

P : Meu caro amigo, desculpe a demora mas, valeu a pena ! O caso de Aristides vai ser realmente resolvido ; haverá uma homenagem, uma condecoração, enfim, tudo como deve ser ... aliás este caso já há muito que estava no centro das minhas preocupações.

Voz em off : De facto, Aristides foi condecorado a título póstumo em Maio de 1987, em Washington. A medalha foi a de oficial da Ordem da Liberdade, sem dúvida uma bela medalha, mas não a mais alta condecoração portuguesa como noticiaram os jornais americanos pensando que só tal distinção se poderia atribuir a um homem que renunciou a tudo para salvar o próximo. Em Portugal a notícia mais uma vez passou desapercebida.

 


 

cena 5

 

Voz off : Num Grande cartaz colocado à saída de uma igreja californiana pode ler-se :

 

A : (aproximando-se da mesa) Faz favor, este assunto interessa-me. Pode dar-me mais pormenores ?

B : Con certeza. Este caso é praticamente desconhecido de todos ; como vê trata-se de um diplomata que preferiu desobedecer às ordens do seu Governo para seguir a voz da consciência. É preciso ter coragem para o fazer. Se considerarmos o momento em que isto se passou e o contexto histórico podemos afirmar que este caso é único.

A : Muito interessante, mas ... 30,000 pessoas é enorme !

B : De facto. Segundo o historiador Yehuda Bauer terá sido a maior operação de salvamento executada por um só indivíduo durante a Segunda Guerra Mundial.

A : Sim deve ter razão, porque o sueco Wallenberg teve o apoio do seu próprio governo. Isto também me faz lembrar a história do diplomata japonês Sugihara ... Mas um português que fez uma coisa destas e eu que não sabia de nada ! Então depois ele foi castigado por quem ?

B : Salazar ao saber que Sousa Mendes estava a dar vistos a judeus mandou-o logo vir para Portugal e moveu-lhe um processo disciplinar "só para inglés ver" pois mal o cônsul chegou a Portugal foi afastado da carreira, da forma mais arbitrária possivel.

A : E nunca mais ninguém o ajudou, nem mesmo aqueles que foram salvos por ele ?

B : Os que foram salvos na sua grande maioria não souberam do triste destino do cônsul.

A : Então porque é que esta petição se faz aqui nos Estados Unidos ?

B : Porque em Portugal este assunto é tabu, ninguém conhece o caso ou então não há interesse e também porque os filhos do cônsul tiveram que abandonar Portugal porque eles também foram perseguidos, e a maior parte deles vive agora neste país.

A : Oiça, sou Tony Coelho, deputado democrata, não se me reconheceu mas, eu digo-lhe : as coisas agora vão mexer ! Você quem é ?

B : Sou um cidadão americano ; veterano ; desembarquei na Normandia no dia D ... Orgulho-me também de ser filho deste homem.

 


cena 6

 

A inauguração do busto.

 

A : Ao desencerrarmos este busto estamos a viver um momento de grande beleza e emoção, pois trata-se de prestar uma homenagem há muito tempo devida a um grande homem, a um verdadeiro cristão, a um bom português, a um cidadão europeu ! A um homem que renunciou a uma carreira brilhante, ao prestígio e às honras deste mundo para salvar vidas de homens que ele não conhecia ; de pessoas que ele não veria nunca mais ... sem lhes perguntar de que raça eram ... de que religião eram ...
Numa época em que o racismo, a xenofobia e a intolerância reaparecem um pouco por toda a parte, o exemplo de Aristides de Sousa Mendes, de altruísmo, de coragem e de amor ao próximo deverão mais do que nunca ser do conhecimento de todos e devem ser transmitidos às novas gerações como património da Humanidade.
Aristides sentiu a dor e o desespero dessas pessoas e não procurou subterfúgios para não agir no sentido de salvar vidas em perigo, nem mesmo o pretexto que ... tinha de obedecer as ordens !
Aristides encarnou o espíritu de altruísmo e de humanitarismo que tanto caracterizou o povo português através da História.
Quando em 1940, milhares de refugiados desesperados bateram à porta do Consulado português em Bordéus, estavam longe de imaginar que estavam a bater à porta certa. Hoje, quando vemos a fotografia de Aristides no Museu do Holocausto em Washington, orgulhamo-nos de ser portugueses. Quando vemos um monumento em Bordéus dedicado a Aristides sentimo-nos orgulhosos em ser portugueses...Quando vemos una enorme floresta em Israel com milhares de árvores a crescerem em memória de Aristides, num local ainda há pouco deserto, sentimo-nos ... impressionados !
A História do século XX deverá incluir um capítulo obrigatório chamado : Aristides, o cônsul que desobedeceu.

 

[O Presidente destapa um busto ou estátua que a pouco e pouco começa a mexer-se, transformando-se em ser humano. Levanta-se, pega num livro e começa a ler.]

  

 


cena 7

O encontro.

Um rabino segue pela rua, de repente avista um gentio que parado na esquina, lê um livro. O rabino pára, olha para um homem, hesita alguns segundos, depois dirige-se a ele :

 

R : Desculpe, ... desculpe.

G : Sim ?

R : Sabe dizer-me por favor onde fica o Quai Louis XVIII ?

G : Sim ... por acaso sei ... não é muito longe. Vai direito até à Place de Quinconces e depois lá vira à esquerda ... Bem eu vou para lá agora. Se desejar mostro-lhe o caminho.

R : Está bem, ... se não se importa que eu o siga. Já venho a pé desde a estação de Saint Jean, ando perdido ... verdadeiramente perdido ! !

G : Venha comigo ; venha comigo ...

R : A minha família, mulher e cinco filhos ficaram lá. Já lá estão há três dias ... imagine.

G : Há três dias ?

R : Sim ... à espera ... à espera de ...

G : ... não me diga que ainda não passou um comboi ...

R : (interrompendo) E o número 14, conhece ?

G : O 14 ? ... Claro ... tenho 14 filhos.

R : Não, não é isso ! Se conhece o 14 do Quai Louis XVIII ?

G : Ah ! ... Esse, esse. Por acaso também o conheço...

R : Conhece ? Então deve saber que lá se encontra o consulado de Portugal ?

G : Sim, de facto ... Vai para lá ?

R : Vou, mas tenho receio que já esteja fechado. Que martírio este ! Sabe ? É que havia umas pessoas hoje lá na estação a dizerem que talvez por Portugal houvesse uma possibilidade de ir embora deste continente e ... parece que o cônsul é um homem às direitas.

G : Ah ...

R : Bem, dizem que é um homem ... como hei-de dizer ? Um homem de coração.

G : Ah, sim ?

R : O que é coisa rara ... nos tempos que correm ...

G : Como em Sodoma e Gomorra ... "Diz-me quantos justos há ?" ...

R : "Se houver dois não destruirei a cidade" ... bem tenho por certo que esse cônsul não nos iria explorar ... tem nos aparecido cada coisa pela frente ... por acaso o senhor não seria português ?

G : Por acaso sou.

R : Ah ... Eu sou judeu, como vê ... não tenho nacionalidade ... tiraram-ma ou perdi-a ... nem sei bem ... se calhar, é isso mesmo, nunca tive nenhuma ! ...

G : Mas de que país ou região é que vem ?

R : Sou de Varsóvia, eu ... quer dizer, vivíamos lá ...

G : Sim ... estou a ver ... aquilo agora por lá ...

R : É uma tragédia, os nossos bens confiscados ... muitos dos nossos irmãos foram enviados para campos de concentração, outros ... tenho a certeza foram assassinados ... isto é o massacre organizado do povo judeu ! Acredite-me : Hitler tem um plano !

G : Tenha confiança ... Deus vai ... heu ... já ouviu !

R : Deus ? Às vezes não sei, não sei se ...

G : Olhe o nº 14 é aqui mesmo.

R : Oh não, não ! Mais um dia perdido, o consulado já está fechado ! E agora ? Meu Deus ... Adonai ! ... Adonai ! ...

G : Não desespere ; diga-me ... tem bagagem ? Oiça, eu ... eu... proponho uma coisa ... tenho ali uma carrinha ; vamos buscar a sua família, vamos comer uma boa refeição e vamos falar depois. O cônsul ... o cônsul sou eu.

 

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Voz off : Depois do jantar a conversa continua entre os dois homens. O cônsul está sentado à secretaria e observa uns documentos.

 

R : (entrando na sala) A famíla ja dorma ! Nem posso acreditar no que se está a passar ... depois de tanta perseguição de tanto sofrimento ... De ver amigos morrerem ... ja não acreditava em nada ; de repente, aqui estou em casa de um católico ... fugindo de outro católico !

Cônsul : Compreendo o que se sente ... sabe ? Desde que o encontrei esta tarde na rua, tenho pensado muito nos judeus e ... devo dizer : sinto remorsos ao pensar na maldita Inquisição. Mas afinal as coisas nunca mudam ? ! !

R : Quem sabe como as coisas se passariam se nos tivéssemos encontrado nesses tempos ?

C : Que horror ! ... Por favor não me fale nisso ... No entanto ... quem sabe de que lado estaria eu ? ... A minha avó chamava-se Raquel Mendes da Gama e há quem diga que ella tinha costela judaica ...

R : Mendes ? Ah, Mendes ... Mendes ... pois os famosos banqueiros do século XVI ... também há os Sola-Mendes de Nova Yorque e de Londres ... mas, o senhor cônsul tem provas documentais ligando-o a alguna família judaica, ou a essa mesma ?

C : Curiosamente provas documentais ligando-me ou não a essa família desapareceram todas. A um certo momento é muito difícil seguir este ramo ... praticamente imposível.

R : Ah, é suspeito, é suspeito ... e logo esse hein ? Se calhar outros ramos da sua família consegue seguir sem problemas ?

C : De facto alguns são muito fáceis de seguir ... mas esse ...

R : É suspeito ... é suspeito ... isto até parece curioso saindo da minha boca. Mas talvez se pretenda esconder alguma coisa, não acha ?

C : O que eu acho é que com ou sem prova todos nós temos antepassados judeus ... quer queiramos quer não ... até os reis.

R : Qual é o rei que não se orgulharia de ser descendente do rei David ?

C : A propósito, sabe que o poeta Catule Mendes era de Bordéus ?

R : Bem, eu sabia que aqui havia uma comunidade judaica bastante importante ... mas desse poeta confesso que nunca li nada ... Sabe, não lhe disse mas ... se o senhor cônsul tem uma costela judaica, eu tenho uma portuguesa...

C : Ah, bom ?

R : ... Sequeira.

C : ... Se calhar ainda somos primos ... ah, ah, ah.

R : Isso ajudar-me-á a obter um visto para uma pátria distante ? Ah, ah.

C : Receio que não ! Sente-se. De facto a situação não é famosa. Eu, por mim, dava-lhe imediatamente os vistos, mas desde há uns tempos tudo se complicou. Agora há uma "Circular 14" que tenho aqui e, segundo esta directiva, antes de concedermos vistos devemos pedir intruções a Lisboa.

R : Ah, sim estou a ver ... Temos que esperar uns dias...

C : Devo também dizer-lhe que segundo esta circular ... (olhando o papel e lendo) ... "é proibido aos cônsules de carreira emitirem vistos a judeus expulsos dos paises da sua nacionalidade ou de aqueles de onde provêm".

R : Voltamos ao princípio.

C : Não, não voltamos ao princípio. A minha decisão já está tomada : poderão partir para Portugal amanhã mesmo. Vou dar-lhes um visto especial. Serão bem tratados em Lisboa ! Prometo !

R : Mas isso é fantástico ! Não sei, como agradecer-lhe ? Só espero que isso não lhe cause problemas ... por causa de nós ... veja lá, a sua carreira ...

C : A minha carreira ? ... Será que posso pensar na minha carreira quando todos os dias milhares de pessoas são massacradas ... aqui à minha porta ?

R : Senhor cônsul ...

C : É verdade que já dei dezenas de vistos nestes últimos meses sem autorização prévia de Lisboa, mas o que é isso comparado com o que vocês passaram ? É verdade que já me avisaram do Ministério : se tornar a dar vistos a judeus ... metem-me um processo disciplinar ! Mas o que é isso em comparação com ... com ...

R : O senhor cônsul não está aqui por acaso ! Foi a providência quem o colocou neste consulado !

C : Não diga isso ! O senhor é um bom pai e marido ... é normal.

R : Senhor cônsul ... senhor cônsul ... se me dá vistos a mim e à minha família então tem de dar também aos meus irmãos ! Desculpe ... senão, não saio de Bordéus ! ...

C : Irmãos ? O quê ? Mas os seus irmãos também estão aí e só agora é que me diz ?

R : Sim, quase me esquecí deles. Deus me perdoe !

C : Mas onde estão ? Quantos ?

R : Os meus irmãos ... :os meus irmãos ... são os outros que estão lá fora há dias, e que não comem e que têm frio à noite.

C : Meu Deus. O que é isto ?... Bem, é verdade que também são meus ; também são meus irmãos ! Mas porque há uns que morrem isso significa que os outros têm de morrer também ? ... Têm de se suicidar ? Por favor seja razoável !
Não se esqueça, eu não posso perder o meu trabalho ! Tenho muitos filhos ... tenho que lhes pagar os estudos, alimentá-los ...
Dentro de um ano posso vir a ser promovido ; pode ser uma embaixada ! (1) nota1

R : Eu compreendo, senhor cônsul, o seu país nem sequer está em guerra.

C : Mas onde é que é o meu país ? ... O que é o meu país ? ... onde acabam as fronteiras do meu país ? o que é que é e o que não é o meu país ? quem são os meus compatriotas ? onde há uma guerra envolvendo tantos países, poderão países neutros simplesmente encolher os ombros e ignorar la carnificina ? ... Quantas pessoas é que precisam de visto ?

R : Segundo alguns, haverá actualmente em Bordéus mais de 10.000 pessoas por quem os nazis pagavam um bom preço.

C :10.000 ? 10.000 pessoas ? Nem pensar ! (2)nota2

 


 

CENA 7

 

O cônsul sai da sala muito exaltado. O rabino Krueger deixa-se cair na cadeira e fica cabisbaixo, adormecendo inclinado sobre a mesa. Um miúdo de 6 a 8 anos entra na sala, fica a um canto e senta-se no chão. Com o dedo começa a visar Krueger e dispara "pum, pum" ... imita uma metralhadora "tactactac". Nesse momento entra Pedro (PN), fica um pouco atrás do miúdo, levanta as mãos e diz :

 

PN : He, chega, chega, basta. Não dispares mais, rendo-me ! Não me mates !3 (3)

O miúdo baixa a cabeça com vergonha.

PN : Então ... quem és tu ? Nunca te vi cá antes. Como te chamas ? ... estás bem armado ... ah, se calhar não me compreendes ... falas francês, alemão ? deutsch ? ... eh, não me faças essa cara. Ja compreendi que não falas ; está bem ; desculpa. Espera aí ... polaco ? Moviesh popolski ? ah não ? se calhar a minha pronúncia, hein ? deixa ver : Pá-rusky, gavarish pa-rusky ? hein niet ? Da ? Da ili niet ? Então não dá nada ? Eh pá, já esgotaste práticamente todos os meus conhecimentos linguistícos ... ah, estás a rir ... (neste momento ou antes começa a ouvir-se piano que vem da sala ao lado) ... sim, sim, estou aí a ver no canto da boca um sorriso. Anda lá, fala ! fala ! confessa ! ... não, não ; estou a brincar, deixa estar ... és estrangeiro, não te preocupes ... eu também sou estrangeiro ; o meu irmão, o pianista, também é estrangeiro ... aliás, aqui nesta casa somos todos estrangeiros. Estás em família ! ...
Vamos experimentar uma coisa : eu chamo-me Pedro. Pe-drô, Pe-drô. Vamos, repete : Pe-drô. O pianista é Zzzzé, Zzzzé. É fácil. Estás a ouvi-lo ? E tu ? ... tu ? Jan ? tive um amigo em Antuérpia chamado Jan. Não, não és tu. E ... Stéphane, Marc, Alphonse, Jean, Vincent, Charles ? ou Frédéric como Chopin ? ... estás quase a rir : "Je te tiens, tu me tiens par la barbichette..."
A mãe esposa do cônsul, entra na sala com um tabuleiro coberto por um pano.

PN : Ah, cá está a nossa Mamã, sempre incansável ! E com mais bolinhos para nós (olhando para o miúdo). Estás a ver está é a minha mamã ... onde está a tua ? ... oh, desculpa...

Mamã : Quem é este pequenino ?

PN : É a primeira vez que o vejo. Ainda não me falou ... imagino que pertença a alguma dessas pessoas que se encontram cá no Consulado. Há cada vez mais refugiados cá em casa ... e a Mamã sempre de um lado para o outro a dar conforto ... e bolinhos a todos.

Mamã : Devo estar sempre no meu posto. Estamos a viver momentos extraordinários e ... não devemos desperdiçá-los. Ainda bem que tenemos cá agora a tua irmã Isabel. Tem-me dado uma ajuda preciosa. Sem ela, não aguentava mais ... o Papá está tão triste por causa das ordens que recebeu do Salazar, deixou-se ir abaixo e está há dois dias com uma depressão ... não diz nada, não come nada, ... está a ficar muito abatido.

PN : Vamos a ver se o Salazar dá uma resposta positiva em breve. O Papá já lhe enviou imensos pedidos de autorização para dar vistos em casos de força maior há bastante tempo...

Mamã : Mas ... esta "Oliveira" não tem boa raiz, ... e casos de força maior ... para ele não existem ...

PN : Pois ... e a pressão está cada vez a ser maior ... cada dia que passa os nazis aproximam-se mais ; os bombardeamentos aumentan e há cada vez mais pessoas lá fora...

Zé : (da sala ao lado, interrompendo PN ) : e cá dentro ! Agora imagina que para ir à casa de banho ... se calhar também preciso visto ! ? Já viste as filas de espera à porta do W :C : ?

Mamã : Tem paciência, Zé. (gritando para a sala do lado)

PN : Alguém teve ter andado a espalhar boatos que o Papá ia dar vistos ... não percebo ...

Zé : Depois não digam que fui eu ! (continuando sempre a tocar piano).

Mamã : (destapando o tabuleiro) : comam ... fi-los agora.

Miúdo : Quero um. Tenho fome.

PN : Olha, olha, ... afinal falas e falas francês bem !

Mamã : Ah, o malandrete ! Estava a brincar connosco.

 

Jules e Isabel entram na sala nesse momento.

 

Isabel : Oh Mamã, apareceu mais um casal de idosos ... ele parecia que ia ter um ataque ... não sabíamos o que fazer ... mandei-os para o nosso quarto. E agora nós, onde é que vamos dormir ?

Jules : A Isabel precisa de um certo conforto no estado em que está.

Mamã : Isabel, fizeste bem. Claro, tu também não te podes cansar. Há mais umas camas que se podem armar ... mesmo no vosso quarto. Terá que ser assim... é a guerra ...

Jules : Sim é a guerra ... mas mais uma razão para sermos frios e realistas. Temos que ter os pés bem no chão ... desculpe, eu sou apenas un genro ... os portugueses dizem uma expressão que me agrada muito : "a caridade começa por nós próprios !"

PN : Então tiro mais um bolo para mim e mais um, aqui, para o meu amiguinho.

Jules : A Mamã e o Papá estão a perder o controlo da situação. Estão a deixar-se ultrapassar pelos acontecimentos ...

PN : Oh Jules, és mesmo frio.

Isabel : Não, o Jules é realista.

Jules : Aliás ao dar abrigo a todos estes refugiados cá em casa, estão a fazer com que eles julguem que isto já é meio caminho andado para Portugal ... depois se o Papá não der vistos eles vão ficar furiosos ... é como se lhes estivessem a dar falsas esperanças ...

Mamã : O Papá quando se levantar daquela cama tomará a melhor resolução para todos ...

Jules : Ah, para todos ! Mas deve ser em primeiro lugar para os seus filhos. Devem pensar no futuro dos vossos ...

Zé : (interrompendo da sala ao lado) Eh, Jules, chega, não digas mais disparates ! Então não sabes que o futuro acaba aqui ? Chegámos ao chamado "fim dos tempos". A terra está moribunda ! É o terminus da viagem. Toda a gente desce ... ah, ah, ah.

Mamã : Desculpa Jules.

Jules : Não faz mal, já começo a conhecê-lo.

(continuando ao piano) : A música é a única coisa digna !

Mamã : Estão a ver como nós sofremos com a guerra ? O Zé desde que viu aqueles horrores em Paris na semana passada ... é como se ja não acreditasse em nada ... é só o piano ; o Papá está incomunicável, ... está mudo ...

PN : Estamos a fazer as nossas trincheiras.

Isabel : Pois é, Mamã. Tem razão ! Nós já começamos a sofrer com a guerra. Mais um motivo para sermos prudentes agora. Pense nos mais pequenos Mamã : o Sebastião, o Luís Filipe, o João Paulo, a Teresinha ... eles precisam tanto do Papá e da Mamã.

Jules : Eu, ... eu ... eu aviso. Se o Papá passar vistos a estes refugiados sem autorização do Salazar pode vir a perder o trabalho ! Vai ter sérios problemas ! Eu e a Isabel ... a ... a Isabel e eu somos contra e não podemos permitir tal coisa ! Temos que ser realistas ; a vida não é só isto ...

(interrompendo) : Já estamos todos mortos, aqui nos campos de concentração e ... em Portugal. De facto, já morremos mas, pensamos que ainda estamos vivos.

Mamã : Pára já, devemos cumprir os nossos deveres de cristãos. Ao abrirmos as portas a estas pessoas, é a Cristo que o fazemos. Ser católico, ou cristão, não pode ser só ir à missa e à confissão.

Jules : Mamã, o Salazar é um grande estadista ! As coisas devem ser vistas com clareza ... com lucidez ...

(gritando da sala ao lado) : Com Lúcifer !

Jules : Oh, pára Zé, já me estás a enervar ! Mamã, o Salazar antes de mais nada quer gurdar a paz em Portugal, por isso não quer desagradar a Hitler, é óbvio. O Salazar é um grande ...

Zé : É um grande nazi ! Isso é que é o que ele é, Jules.

Jules : Assim não se pode falar ...

Mamã : Um dia um professor universitário disse-me uma simples frase que ainda hoje me faz tremer ... foi como uma premonição : "O Salazar é mau !"

(off) : Então, com mil demónios, as casas de banho aqui deste Consulado, continuam ocupadas ... quer dizer para as necessidades, agora, só em Lisboa ... e banhos ... só de sangue ...

Isabel : Mamã, peço-lhe, o Jules tem razão : Convença ao Papá para não das vistos ... pense no nosso filho que vai nascer ... o seu primeiro neto ...

Mamã : Nunca devemos ter medo de fazer o bem ao próximo ... em nenhuma ocasião ... e Deus ... lá está para não nos deixar mal.

Jules : Isto é muito bonito mas, neste momento Deus não sabe ... não pode responder a tanta súplica.

Mamã : Não te esqueças Jules que Graças a Ele nós estamos todos vivos e temos pão todos os dias e ... saúde. Tu Jules apesar do teu país ter sido invadido, não perdeste ninguém e estás aqui também a caminho de Portugal ... Dá Graças, Jules ! Vejam este pequeño, coitadinho, com tanta fome. Apareceu cá hoje. Onde estão os pais dele ? O que lhes terá acontecido ? Não tenho dúvidas : a nossa porta está permanentemente aberta para quem quiser ... Quanto aos vistos para Portugal, a decisão é o vosso pai que a deverá tomar, Isabel. Eu espero que ele diga SIM.

Jules : E se ... ele dizer não ?

Mamã : "As esposas devem ser submissas aos maridos", manda a Bíblia. Mas ... ... ... no fundo ... espero que ... quando o Papá se levantar que seja para agir ! ! !

Isabel : Mamã !

Jules : Vamos Isabel, não serve de nada discutir !

 

Jules e Isabel saem da sala para logo em seguida à porta, Jules dizer :

 

Jules : Mamã, nós somos en contra ! E quero que saiba que ... quero que saiba que ... se essa decisão for tomada, eu e a Isabel ... quer dizer a Isabel e eu ... estamos prontos para os ajudar o mais possível. Tudo quanto seja necessário ... qualquer coisa ... contem connosco !

(off) : E comigo também ... eu para refugiado. Tenho cá um jeitão para isso ... aliás todos nós cá na família fazemos uns óptimos refugiados... ah, ah, ah !

PN : Orgulho-me de si Mamã : sempre corajosa e no seu posto ! Vamos a ver como isto se vai passar. No fim de contas, pode ser que o Salazar responda afirmativamente às centenas de telegramas que o Papá já mandou enviar pedindo autorização para atribuir vistos.

Mamã : Sim, mas não te esqueças : isto é uma corrida ; daqui a 4 o 5 dias as Tropas de Hitler entram em Bordéus e estes refugiados serão todos enviados para campos de concentração. Não podemos cruzar os braços e esperar pela autorização do Salazar indefinidamente.

PN : Não há nada que resista ao avanço nazi. É impressionante a força deles.

Mamã : Bem, mas olha agora aqui por este menino um pouco mais até o jantar. Vou à cozinha ver o que se pode fazer para o jantar.

PN : Sim, com certeza. Então meu comilão, como te chamas ?

Miúdo : Iacha.

PN : Ah, sim, sim ! Eu sou o Pe-drô.

Miúdo : Pe-drô.

PN : Donde vens ?

Miúdo : Antuérpia.

PN : Então ... ... e os teus pais ?

Miúdo : ... ... pusseram-me num comboio ...

PN : Sim ... sim ... e para onde vais ?

 

Miúdo tira um papel do bolso desdobra e mostra a Pedro.

 

PN : Ah, cá está, ... cá está ... 845, Pine Av. Manhattan, N. York América. Tens lá família ?

Miúdo : Sim ... és meu amigo ?

PN : Evidentemente ! Sabes bem que sim ; não duvides !

Miúdo : Tenho um segredo, mas, ... é só para amigos.

PN : Claro, os segredos são só para amigos.

Miúdo : Queres ver ?

PN : Mostra lá.

Miúdo :(abrindo um lenço) : olha aqui ... estás a ver ? ... São preciosas ! Isto é um tesouro, não é ?

PN : É mesmo, é mesmo ! Estas pedras são mesmo verdadeiras ! ...

Miúdo : Não são pedras, são diamantes !

PN : Ah, são diamantes ! Desculpa. Quem é que te deu isto ?

Miúdo : Foi o meu pai, quando entrei para o comboio.

PN : Tens que guardar isto muito bem e ... não mostres a ninguém ... nem mesmo aos amigos ! Meu Deus, são mesmo verdadeiros !

Miúdo : O meu pai disse-me para guardar muito bem e para dar um, por exemplo, se um dia tiver muita, muita fome. Si quiser comer um pão ou um bolo, então posso dar um.

PN : Já deste alguns a alguém ?

Miúdo : Não.

PN : Então, guarda-os bem. Só em momentos muito graves é que os deves usar.

 


 

cena 7. prolongamento

 

 

Voz off : Ao fim de 3 dias de postração, sem falar e sem comer o Cônsul levanta-se repentinamente e com uma energia de leão surge na sala onde o Sr. Krueger dormita. São seis horas da manhã do dia 17 de Junho de 1940.

 

C : Vamos, vamos senhor Krueger, preciso de mão-de-obra, preciso de si, vamos dar vistos a toda esta gente. Vamos, levante-se !

R : Ah ... ah ... Sim, sim ... que posso eu fazer ?

C : Para já vamos organizar um sistema rápido e seguro. Os meus dois filhos que estão cá também vão ajudar assim como a secretária e o chanceler... quer ele queira quer não !

R : Mas afinal o quê ? ...

C : O quê o quê ?

R : Sempre dá vistos ?

C : Claro, mas o que pensa ? Não vou deixar as pessoas para ir a morrerem debaixo das bombas. O meu filho já foi chamar a guarda.

R : A guarda ?

C : Sim posso desobedecer e ser rebelde, mas ... tudo com muita ordem.

R : Não sei como é que isto vai ser ... lá fora há montanhas de gente.

C : A fé transporta montanhas ...

R : Mas tudo isto é espantoso ainda nem posso acreditar ... Como é que se decidiu ?... Ah ... ouviu a voz da razão !

C : Bem, de facto ouvi uma voz, mas ... não deve ter sido a da razão ...

R : Adonai ! Então vai ajudar ... todos ?

C : Todos os que me pedirem um visto obtê-lo-ão ... e de graça ! Istos são os formulários.

R : Os formulários ? ... Para quê senhor cônsul ?

C : Mas, para pôr os vistos ! Onde é que quer que eu os ponha, esses vistos ?

PN : (Entrando na sala). Papá a guarda já chegou e agora estão a organizar a fila de espera lá fora. Vieram armados até os dentes com baioneta calada e tudo ! A bicha já ultrapassa facilmente os cem metros.

R : Oh, isso ainda não é nada. Quando os refugiados souberem da decissão do Senhor Cônsul, vai haver aí uma afluência de vários quilómetros.

C : Era isso mesmo que eu estava a pensar agora : Como é que essas pessoas vão saber que podem obter vistos caso necessitem e o desejem ? Enfim, não me posso servir da rádio para tal coisa ... nem dos jornais.

PN : Não, tem de ser informação directa.

C : Talvez o Sr. Krueger saiba de locais mais frequentados por refugiados tais como a estação de caminhos de ferro ? ou a Sinagoga ?

R : Sim, exactamente. Pode-se mandar alguém a esses e a outros locais para anunciar aos refudiados que ... surgiu uma luz ... uma estrelha a brilhar ... lá no alto.

C : Sim, óptimo. Quanto a ti, Pedro, vem com Jules para me ajudarem aqui a redigir os formuláros. Sr. Krueger tenho outro favor a pedir-lhe para já : é, se pode ir lá fora com o meu filho Zé, agora ele não está a tocar piano, e peça os passaportes a todas as pessoas que lá estão. Será mais práctico assim. Só os casos "especiais" é que é preciso ver pessoalmente, compreende ? ...

R : Sim. Primeiro "despachamos" estes e depois serão aqueles que irão dar a conhecer aos outros refudiados a "boa nova". O seu filho Zé já estará levantado ?

C : Sim, sim, deve estar a tomar o pequeño-almoço. Ele vai ajudá-lo.

 

O Senhor Krueger vai sair da sala, mas o cônsul, interpela-o :

 

C : Desculpe, Senhor Krueger, só mais uma coisa ... está com frio ? Não é friolento ? Não ? ... Estamos no verão...

R : Sim, ... agora é verão...

C : É que ... eu penso ... seria mais facil para si, depois para entrar no Consulado ... se tirasse o chapéu e o casaco ...

R : O chapéu e o casaco ! ? 

C : Sim, é que sem chapéu e casaco dá um ar de quem está em casa ... está a ver ... é que, eu recceio que depois, todas essas dezenas de pessoas que estão por aí, pelas escadas acima, não o deixem entrar, pensando que o senhor quer passar à frente deles ...

R : Ah, bem pensado ! É um bom truque ! Ideia ... brilhante !

PN : Sim, ainda ontem, eu próprio tive problemas para entrar em casa ... Não me queriam deixar passar. Eu dizia-lhes que era o filho do Cônsul e eles ... riam-se e mandavam-me para o fim da bicha ! ...

R : Sim, senhor. Aquí fica o meu chapéu e o meu casaco. Por uma causa nobre !

 

Depois o rabino, Sr. Krueger dirige-se directamente para o público e diz :

 

R : Atenção, atenção ! A todos os refugiados ; judeus e não judeus. Todos ! dêem-me os vossos passaportes. O Cônsul-Geral de Portugal vai dar-vos vistos. Vistos para todos. Dêem-me os vossos passaportes !

 

Depois o Sr. Krueger pega num saco cheio e dirige-se de novo para a sala onde o Cônsul trabalha.

 

R : Ora cá estou e bem carregado : são os primeiros passaportes. Mas que peso !

C : Vale mais tê-lo nas costas do que na consciência !

 

Pedro e Jules levantam-se e começam a retirar os passaportes do saco. Sentam-se à mesa e começam a trabalhar. Do outro lado da mesa o Cônsul prepara o carimbo, escreve, etc, e dita para Pedro e Jules :

 

C : Vocês estão prontos ? Então escrevam o texto dos vistos : "O Governo Português solicita ao Governo Espanhol a gentileza de autorizar o portador deste visto a transitar livremente por Espanha. Trata-se de um refugiado do actual conflito europeu, a caminho de Portugal."

 

Em seguida o cônsul começa a carimbar e a assinar. Todos trabalham. A esposa e a filha do Cônsul ajudam. O Sr. Krueger vai entrando com mais sacos cheios. Esta cena muda pode durar alguns segundos ou ... minutos.

A um certo momento a esposa Angelina dirige-se a Aristides.

 

Angelina : Aristides, está ali fora um indivíduo que diz que precisa muito de falar contigo e insiste que seja em privado.

Cônsul : Um indivíduo ? Em privado ? É estranho ...

A : Ele também tem um ar estranho, isso é verdade !

C : E em privado ? Mas esta casa está cheia de gente. Local privado nesta casa é coisa que não há ! E para quê ?

A : Não me quis dizer ; é muito misterioso. Disse apenas que é um caso de vida ou de morte !

C : De vida ou de morte ? Mas isso é prácticamente como para todas as pessoas aqui. É um caso banal, então ! ?

A : Ah, ele disse ainda que ouviu falar muito de ti recentemente e que neste momento precisa da tua ajuda.

C : Continua a não ser exepção nenhuma. Banal.

A : Ele pediu-me para te mostrar os papéis dele. Aqui ... neste envelope.

 

O Cônsul abre o envelope, pega nos papéis. Reflecte alguns segundos. Levanta-se lentamente e pede a todos para saírem da sala.

 

C : Penso que no fim de contas talvez deva ver este homem ... peço-vos para interromperem um pouco o trabalho ; só alguns instantes. De facto, devo recebê-lo ... ... em privado já agora. Vamos ver o que é que ele terá para me dizer.

 

Todos se levantam e saem deixando o Cônsul só à mesa escrevendo. A porta abre-se, entra um homem duns 30 anos.

 

C : (Continuando a escrever, ou a fingir... e não olhando) Sente-se por favor !

 

O homem ajoelha-se no meio da sala.

 

C : (não olhando) eu disse "sente-se, por favor" !

Homem : (ajoelhado) Pequei !

C : (olhando com surpresa) ... É capaz de haver aqui um equívoco ... "isto" provavelmente então , não é comigo, sabe ...

H : Senhor Cônsul-Geral de Portugal em Bordéus, eu pequei !

C : (olhando para ele com surpresa e para os papéis) Hauptmann Curt Graf von ... Capitão ... Graf von ...

H : (ajoelhado) Ex-capitão, agora sou ... desertor. Curt o desertor.

C : Desertor ? O desetor ?

H : Sim, desertor !

C : Mas isso não me parece um pecado, ... quer dizer, enfim ... um grande pecado ... até ... bem vistas as coisas ... isso não é pecado. Enfim, ... certas pessoas me dirão ...

H : Ja não podia aguentar mais este horror Senhor Cônsul ! Eu ... eu ... eu ... pequei ... o meu pecado foi ... foi ... matei ! Matei muitas pessoas ! A minha consciência não aguenta mais. Até já pensei suicidar-me, mas compreendi que isso seria continuar a ser cobarde ! Em seguida pensei entregar-me às autoridades francesas mas ... tive medo. Um medo enorme ! Sei que me entregariam ao exército alemão e o mais natural é ser logo fuzilado e ... tenho medo de morrer. Tenho um medo horrível da morte e no entanto, é a única coisa que mereço.

C : Vamos Capitão ... quer dizer ... hem ... vamos Senhor Graf ... o que é que eu posso fazer por si ?

H : Senhor Cônsul, participei na invasão da Holanda, da Bélgica e da França e matei muitas pessoas. As coisas não tinham que ser assim ... Cada vez que via aqueles jovens soldados, alguns tão jovens, a caírem mortos ... era como se ouvisse os gritos das famílias deles ; das mulheres e dos filhos deles ... que monstruosidade ! Como é que eu aceitei participar nesta carnificina ? ! Matei homens para poder ser promovido e ser condecorado, mas que horror ! Que crime ! ! ! Com que direito ! ? ! ... Em nome de quê ?

C : O senhor é ... é ... um homem de consciência.

H : A minha consciência está em sangue !

C : O senhor mesmo ... matou ? Matou homens com a sua arma ?

H : Mesmo se as minhas balas não mataram ninguém, são tão criminosas como as balas dos meus homens. Eu era o Capitão, eu ia à frente. Não tenho desculpa.

C : Bem, mas o senhor estava a cumprir ordems ...

H : (interrompendo) Justamente, ai é que está a razão pela qual eu o venho ver, Senhor Cônsul. Nós todos somos responsáveis pelo que acontece. Como seres humanos, temos responsabilidades perante a nossa própria espécie ; perante Deus. Temos que saber quando se deve deixar de obedecer às ordens de outros que se intitulam superiores hierárquicos e temos que assumir as nossas responsabilidades pessoais perante a Humanidade, senão será o fim da espécie. O fim do mundo ! Só porque todos andamos a cumprir ordens ! ... O fim da espécie. O fim do mundo ! Só porque todos andamos a cumprir ordens ! ... Para eu compreender isso morreram muitíssimas pessoas. Destruí imensas famílias ! Quantas crianças ficaram sem pai, por mina causa ? Eu, que também sou pai ; tenho três filhos ! Como é que eu fiz isto a outros ? ...

C : Sim, realmente, compreendo o seu desespero.

H : Quando soube que aqui em Bordéus havia um homem que esta a pôr a vida e a carreira em perigo para ajudar outros a escaparem à raiva de certos criminosos ; um homem que teve a coragem de desobedecer às ordens vindas do seu superior hierárquico e quebrar assim esse odiento encadeamento de ordens e de regulamentos ; pensei logo que era esse o único homem que poderia, ou tinha o direito de, decidir da minha vida neste momento.

C : Penso que se todos os homens fizessem como o Senhor as guerras acabariam aqui ... pode ser que um dia cheguemos lá ? Talvez seja necessário que ainda se façam mais algumas loucuras para que os homens e as mulheres compreendam isso e um dia digam Não ! ... Em concreto, diga-me, o que posso fazer por si ?

H : (sempre ajoelhado) Senhor Cônsul, sou casado e pai de três filhos. Matei muitos homens ... desertei e agora estou aqui. Entregue-me à resistência francesa e que eles me matem ou que se sirvam de mim como refém, ou então ...

C : Sim, ou então ? ...

H : Se me der um visto para Portugal, de lá irei para outro país bem longe e esperarei ai pelo fim da guerra e talvez um dia torne a ver os meus filhos ... a minha mulher ... o meu destino está nas suas mãos. Aceitarei a sua decisão, qualquer que ela seja.

 

O Cônsul olha para o homem e de novo para os papéis. Escreve umas linhas. Carimba, assina e dá os papéis ao homem, dizendo-lhe :

 

C : Que Deus o proteja, a si e à sua família. Levante-se.

 

O homem levanta-se, olha para os papéis, depois para o Cônsul com respeito e admiração. Perfila-se como para lhe fazer uma "continência" no mais belo estilo mas pára a tempo e faz apenas uma vénia com muito respeito. Dá meia volta e sai da sala em silêncio, comovido.

Na sala entra o senhor Krueger seguido de Pedro, Jules e Isabel. O Senhor Krueger aproxima-se da frente do palco e diz :

 

Rabino Krueger : Atenção, atenção a todos ! As pessoas cujos nomes forem chamados deverão vir aqui recuperar os passaportes já com vistos, podendo em seguida seguir viagem para Portugal. Trata-se de vistos de trânsito, significa que poderão permanecer em Portugal para tratarem das formalidades de emigração para o país da vossa escolha.

Atenção, então :

Ehrenfeld, Epelbaum, Spielberg, Bromberger, Goldmann, Morovitz, Spett, Hirsch, Goldenberg, Stern, Zimmermann, Cohen, Bloom, Veil, Weiss, Rothshield, Habs ... hem ... Sua Alteza a Imperatriz da Áustria, Zita Von Habsburg e comitiva, Moskowitz Stadesky ...

 

PN : Bronfmann, Schweikowsky, Katz, Jacobwitz, Shpiro, Zvi Deutsch, Rath, Jarvik, Carol, Sua Alteza a Grã-Duquesa Carlotte do Luxemburgo Von Zealand, Friedmann, Gingold, De Vleeshaver.

J : Martins, Henriques, Pinto, Seixas, Pereira, Sequeira, Peres Gomes, Silva, Cardoso, Nogueira, Sanches, Oliveira, Abecassis, Coelho.

Voz Off : Nesses três dias o Cônsul não se deitou, não mudou de roupa e não se barbeou. Ao quarto dia, un sinistro personagem penetrou no gabinete do Cônsul.

Personagem Sinistro : Procuro o Cônsul Sousa Mendes ! Sabe onde está ? Quem é ele ?

C : ... Sou eu, naturalmente ... E o senhor quem é ?

PS : Sou o embaixador extraordinário em Madrid e venho aqui como enviado especial com plenos poderes para averiguar "in loco" esta loucura de atribuir vistos. Há aqui uma grande irregularidade : o senhor está a ir frontalmente contra a "Circular 14". O senhor está a desobedecer a Salazar.

C : A "Circular 14" está a ir frontalmente contra o artigo 8º da nossa Constituição que o senhor tem a obrigação de conhecer bem. A "Circular 14" e Salazar estão a desobedecer a Constituição. Lei fundamental do nosso pais !

PS : Mas ... a Conastituição é para ser aplicada em Portugal.

C : Então e o senhor ambaixador extraordinário esquece que os postos diplomáticos são território nacional e que a Constituição também deve ser aplicada aqui ?

PS : A Constituição é só válida para portugueses em terras portuguesas, digo-lhe eu !

C : O artigo 7º da Constituição estende todos esses direitos aos estrangeiros !

PS : Salazar sabiamente decidiu suspender este aspecto ...

C : O artigo 10º da Constituição diz que : "É vedado aos orgãos de soberania conjunta ou separadamente suspenderem a Constituição ou restringir os direitos nela consignados."

PS : Olhe, quer que lhe diga ? ... Merda para a Constituição !

C : Ah ... assim já é diferente ... e Salazar o que é que ele pensará ?

PS : Oh ... mas ... mas ... há quantos dias é que o senhor não faz a barba ? Já viu essa camisa ? E a sua gravata ? Oh, isto é o descalabro ! Oh não ... é a derrocada ! ...

C : Oiça, embaixador extraordinário com missões especialíssimas ou não, já me está a enervar. Isto aqui não é nenhum salão de beleza, e "in loco" eu sou o cônsul-geral deste consulado e sou eu quem manda aqui ! Tomei uma decisão : ajudar todas as pessoas que precisem de escapar à morte e aos campos de concentração ! Lá fora havia pessoas que não comiam há meses uma refeição digna desse nome ; algumas não sabiam dos filhos, dos maridos ou dos irmãos ... ainda há poucas horas estávamos a ser bombardeados e ... e ... você quer saber onde está a minha gravata ? Você pensa que eu posso ir fazer a barba quando ao meu lado há seres humanos a serem destroçados ? ... Então mas você não vê nada ? De onde é que você saiu ? Então você não lê as notícias ?

PS : Isto é um ultrage ! Salazar está indignadíssimo com a sua atitude : dar vistos a judeus e a outros refugiados ! Que atrevimento ! Ordeno-lhe que pare já ! ! Já ! Já !

C : Olhe, senhor embaixador, eu só paro quando lá fora não houver mais ninguém que precise de vistos para a liberdade. Agora deixe-me que tenho tudo isto para assinar.

PS : Pare já em nome de ... em nome de Salazar !

C : Dixe-me em paz ! Em nome de ... em nome de Deus !

PS : Você está doido varrido ; está passado, está louco !

C : Se estar louco é sentir a desgraça dos meus irmãos então senhor grande embaixador eu estou louquíssimo e não há nada a fazer. Agora saia daqui do meu consulado. Já !

PS : Sim, saio, mas você vai pagar esta ofensa bem caro ! Salazar quando souber ... isto é um insulto às ordens de Salazar e às forças de ocupação alemãs ...

Voz Off : Aristides só parou depois de ter ajudado todos os que precisavam. Depois aceitou acompanhar dosi homens de Salazar para Lisboa. Iam começar 14 anos de terrível sofrimento que só terminariam com a sua morte

R : Então o senhor cônsul sempre vai com esses dois algozes para Lisboa ?

C : A missão terminou.

R : O senhor cônsul é o melhor embaixador que um país poderia ter.

C : Nunca serei embaixador ! ...

R : Nestes três dias o senhor cônsul conseguiu fazer desaparecer de dentro de mim o grande ressentimento que tinha por Portugal desde há séculos ... Agora para mim Portugal tem de ser um país extraordinário capaz de ter cidadãos ... como o senhor cônsul. Só receio que venha a ter sérios problemas por causa de nós ... judeus ...

C : Se tantos judeus sofreram por causa de um católico, então ... também é possível que um católico sofra por causa de tantos judeus !

R : O senhor Cônsul e a senhora Angelina são verdadeiramente Cristãos !

 

O cônsul abraça o senhor Krueger, depois volta-se para os dois homens e diz :

 

C : Vamos, meus senhores : cumpram-se as ordens ! Uma orden não se discute ! para Lisboa.

 

O Cônsul sai da sala com os dois homens. O Rabino fica sozinho como que reflectindo. O Cônsul torna a entrar em cena e diz :

 

C : Então e o Sr. Krueger fica aqui ? É melhor ir andando também para Portugal com a sua família.

R : Sim, sim, tem razão, estava de facto pasmado, aqui a olhar para esta sala vazia e a interrogar-me sobre todas as coisas que se passaram aqui em tão pouco tempo. Foi ... inacreditável ! ... Todos os dias daqui para o futuro recordarei o que aqui se passou ! ... Vamos.

 

Saem todos, o palco fica vazio.

Numa sala de um posto fronteiriço francês bastantes refugiados. O moral a zero. Em primeiro plano o rabino Krueger. O Cônsul entra seguido de dois funcionários.

 

Cônsul : Boa tarde meus senhores o que é isto ? O quê ? ... O senhor Krueger aqui ? Não contava encontrá-lo tão cedo nem aqui. Passa-se alguma coisa ?

Rabino Krueger : Senhor Cônsul ! Ah, que bom vê-lo ! As coisas aqui estão muito feias ... não podia ser pior !

C : O que aconteceu ?

R : Fomos recambiados da fronteira espanhola de Irún, para aqui.

C : Nãooo ! ! !

R : Os espanhóis não nos querem deixar passar. Dizem que os vistos assinados por si já não são válidos !

C : Ah, aí temos o resultado da intervenção do Senhor Embaixador extraordinário em Madrid. Pediu à polícia espanhola para não aceitar os meus vistos. O canalha ! O canalha !

R : Felizmente que a grande maioria conseguiu passar ... mas nós .. 

C : Então e o Sr Krueger, que passou já não sei quantos dias em Bordéus a ajudar-me a dar vistos a tantos e tantos refugiados, ia agora ficar aqui retido, sem poder passar ? Não, isto não é possível !

R : Desta vez não há nada a fazer ... só um milagre ...

C :Tem de haver uma possibilidade. Não me conformo com isto ! Não aceito isto.

C : Então todas estas pessoas aqui e todas as outras lá fora estão aqui pela mesma razão ? (4) 4

R : Pela mesmíssima razão ! Somos várias centenas para quem os seus vistos foram uma ilusão ... que duro pouco tempo ... um sonho.

C : Não ... a ilusão vai ser agora. Quantos carros é que haverá lá fora ? É possível saber-se ?

R : Si, porquê ?

C : Os meus vistos têm de ser mesmo válidos para todos, garanto-lhe. É uma questão de honra ! Conheço a uns poucos quilómetros daqui outro pequeño posto fronteiriço. Quase ninguém sabe, mas eu sei que existe ! Onde não há telefone. Tenho a certeza que ninguém pensou em avisá-los acerca dos meus vistos. É por lá que passaremos !

R : Todos ?

C : Todos, Sr. Krueger, não deixaremos ninguém para trás. Vou precisar da sua colaboração mais uma vez.

R : Vamos a isso !

C : O Senhor, eu e mais alguns carros vamos levar pessoas até essa fronteira, depois voltamos para aqui e tornamos a levar mais pessoas e assim de seguida, até que todos passem.

R : E depois do outro lado, há comboio ?

C : Exactamente ! Do outro lado há comboio. De lá "os nossos" poderão apanhar um comboio regional até S. Sebastián e depois mudam para um que vá até Portugal.

R : É o milagre a acontecer !

C : Vamos imediatamente. Sigam-nos por favor meus Senhores e minhas Senhoras. Peguem nas vossas bagagens. Não há mais tempo a perder.

 

Saem as pessoas todas. Os dois funcionários portugueses observam tudo em silêncio, estupefactos. Quando o Cônsul vai a sair esbarra num deles.

 

1º funcionário : O Sr. Cônsul não vai a mais lado nenhum.

C : Disse alguma coisa ? Não percebi.

1º F : O Sr. Cônsul está a caminho de Portugal.

C : Obrigado pela informação. Queira desviar-se para eu passar.

1º F : O Senhor Cônsul não debe ajudar essas pessoas.

C : Não estou a ouvir bem ! ... O que eu devo ou não devo fazer, sou eu quem decido de acordo com a minha consciência.

1ºF : Mas, o Senhor Cônsul vai continuar a ajudar refugiados ; vai continuar a desobedecer a Salazar e eu sou contra isso ...

C : O Senhor fecha a boca e já ! O Senhor pode ser contra o que quiser, contra quem quiser, estou-me nas tintas ! Pode ser zeloso como quiser, estou-me nas tintas ! Eu ainda não fui destituído das minhas funções de Cônsul-Geral em Bordéus, está a compreender ? O senhor cumpra as suas ordens e siga o seu regulamento à risca se não sabe viver sem isso, mas a mim o senhor não diz nada ! Isto é RI-DÍ-CU-LO ! Vamos, Senhor Krueger já perdemos muito tempo.

 

O Cônsul e o rabino saem finalmente do posto fronteiriço, ficando apenas os dois funcionários portugueses olhando um para o outro.

 

1º F : Eh pá ... vo-vo-você já viu isto ? ó Saraiva ? ! Este homem está mesmo maluco, nunca vi nada assim ... Quem é que ele pensa que é para desafiar assim Salazar ? Este homem merece um grande castigo. É que uma coisa destas nunca vi !

2º F : Eu, também não ; estou espantado de facto ! Não sei o que dizer ... estou estupefacto !

1ºF : Se eu tivesse um nadinha mais de poder ... este homem ia acorrentado para Portugal e deixava-o lá numa masmorra. Ele humilhou-me !

2ºF : E que energia ! ... Que força ! ... Que vontade ! ... Que determinação !

1º F : Chega, basta aí oh Saraiva ! ... você ... até parece que está ... admirado, alto aí ...

2ºF : E estou, como nunca estive.

1ºF : Quer dizer, você até parece que tem admiração por ele. É isso que eu quero dizer.

2º F : É isso mesmo, Mesquita, admiração ! É essa a palabra que queria usar. Admiração !

1ºF : Admiração ? ... Oh, oh, oh ... oh Saraiva, cuidadinho com o que diz. Veja lá, você é um funcionário do Estado, tem responsabilidades ! Não se esqueça das suas funções !

2ºF : Não, não me esqueço, sou um funcinário do Estado mas, lá porque o sou também não me posso esquecer que continuo a ser un homem, um ser humano em todas as ocasiões.

1ºF : Você tem que respeitar os regulamentos ! O primeiro dever do funcionário é a obediência às ordens.

2ºF : Bem, isso é em tempos normais. Há momentos em que o lado humano debe impôr-se aos regulamentos.

1ºF : Eh pá, Saraiva, o que é que você anda a ler agora ? Cuidado com essas teorias ... deixe-se disso Saraiva, é um amigo que o aconselha ...

2ºF : Eu acho que um funcionário devia ter o direito de protestar contra uma ordem injusta ...

1ºF : Cale-se já, senão quem da parte de si, sou eu ! O que é que lhe deu ? Será que "isto" se pega ? ...

2ºF : Este Cônsul desobediente está-me a dar a maior lição da minha vida. Isto é que é amor ao próximo ! Isto é que é um Homem !

1ºF : Cuidadinho com o que diz ...

2ºF : Então .. então um gigante é isto !

1ºF : Ah, você está com alucinações ; está a delirar.

2ºF : A nós os funcionários esmagam-nos com ordens e regulamentos, desumanizam-nos ... se fosse o lado sempre a dominar talvez ... não houvesse guerra ...

1ºF : Ai que azar o meu, vir em missão especial a França em tempo de guerra com um gajo destes ! E eu que pensei que você era fixe .. Oiça lá, ó Saraiva, então já agora porque é que você não vai dar uma judinha, para guiar um carro prá frente e prá trás ? ...

2ºF : Sim, mas sei lá onde é que eles estão ?

1ºF : Vá lá ver fora, seja "humano". É que já agora apanhava também um processozinho disciplinar.

2ºF : Eh pá, você não me mete medo. Eu ia, ia, mas ...

1ºF : Mas tem medo. Você fala, fala, fala, mas não tem coragem.

2ºF : Ah, você afiinal reconhece que se trata de um acto de coragem ! ?

1ºF : Coragem ? Eh pá, você não me troque as voltas !

 

Nesse momento entra o Cônsul na sala.

 

C : Pronto, cavalheiros, agora nós. Continuemos a viagem. Vamos a ver se ainda passamos a noite em Victória.

2ºF : O quê ? Victória ?

C : Sim, ... porquê ?

2ºF : Os ... os refugiados passaram a fronteira para Espanha ?

C : Sim Senhor !

2ºF : Todos ?

C : Sim Senhor, todos ! Senão eu não estava aqui. Estão todos em Espanha a caminho de Portugal.

2ºF : Eram muitos ?

C : Eram, e depois ? O que é que o Senhor tem com isso ? Olhe o regulamento.

2ºF : Então o Sr. Krueger e a família sempre vão para Portugal !

C : Claro ! Evidentemente !

2ºF : Que bom ! Bravo Senhor Cônsul, bravo ! Viva !

 

C : . Desculpe ? ...

FIM

 

 

última cena

Aristides de Sousa Mendes entra numa das salas do seu palacete em Cabanas de Viriato. Parece mais velho e abatido, a gravata está mal posta e está ligeiramente despenteado. Caminha com dificuldade arrastrando a perna direita e usando bengala na mão esquerda, o braço direito quase que não mexe. Aproxima-se da mesa onde estão alguns envelopes ; senta-se.

 

Aristides : Ah, hoje há correio ... (põe os óculos). ... contas ... contas ... contas ... ah, uma carta do Sebastião. Isto é que interessa !

 

(Tenta abrir a carta com dificuldade pois a mão direita está afectada devido a um ataque cerebral. Enfia o dedo indicador esquerdo na parte superior do envelope e rasga-o. Desdobra a carta e lê-la em voz alta.)

 

Aristides : San Francisco, 11 de Outubro 1948. Meu querido Papá, meu querido filho ! Meu querido Papá, Ainda não consigo acreditar que a Mamã nos tenha deixado ! Quando passei por aí pela última vez em Agosto de 45, depois da guerra, a caminho dos Estados Unidos, nunca pensei que essa seria a última vez que veria a minha Querida Mamã.

(Aristides fica cabisbaixo alguns momentos depois continua a ler primeiro em voz baixa "bzzbzzzbzz- bzzz" e depois vai gradualmente lendo mais alto)

 

Aristides : Nós falamos do Papá a todas as pessoas que encontramos. Contamos o que fez em 1940 em Bordéus e todos dizem que o Papá e um grande herói da 2ª Guerra Mundial e que um dia todo o mundo o saberá.

Aristides : (riso amargo) ah, ah, ah, um grande herói da 2ª Guerra Mundial, ah, ah, ah, olha para mim, meu filho, ah, ah, ah, aqui, quase paralítico, viúvo, na miséria (a casa hipotecada) e os filhos longe ... longe (irónico) Grande herói para aqui esquecido ! Apresentei recurso da Sentença do "Oliveira" ao Supremo Tribunal Adminstrativo : nada ! Fiz uma exposição à Assembleia Nacional : nada ! Escrevi indvidualmente a cada deputado e nem um único me respondeu ... grandes cobardes ! Todos con medo que se saiba ou que alguém desconfie que me escreveram. Todos de rastos diante do "Oliveira". Esse sim, esse é o único que manda, o único que decide e não volta atrás ... ele ... até tem medo de sí próprio ... MONSTRO ! ! ! Condenou-me à miséria e ao silêncio e ao esquecimento ... perpétuo ! ... a uma morte lenta, num país que se gaba de ser um dos primeiros a abolir a pena de morte ! ... Mas ... mesmo sabendo o castigo que me estava reservado, se fosse preciso tornar a fazer aquilo tudo que fiz ... fá-lo-ia sem hesitar ! (Aristides continua a ler a carta) Disseram-me que o Papá estava a pensar casar-se de novo com uma Senhora francesa ; é verdade ? Por favor, não se precipite ! Ah, vejo que estás bem informado. Como é que soubeste ? (Continuando a carta) Eu sei que o Papá está numa grande solidão e a atravessar momentos muito difíceis, mas porque é que também não vem viver connosco para aqui para América ? Mas então meu filho e quem é que vai guardar aqui a nossa casa, hein ? E quem é que vai continuar aqui a luta pela minha reabilitação ? É aqui a frente dessa batalha ! Não devemos desistir. Eu irei até o fim, até não poder mais ... até morrer ...

A luz vai enfraquecendo até o fim da cena.